domingo, 26 de outubro de 2008

Paulo Freire - Na voz do mestre, alguns saberes necessários à prática docente




Salto Para o Futuro
Nome: Paulo Freire


Formação: Paulo Freire dedicou-se a diferentes experiências no campo da educação: Alfabetização de Jovens e Adultos, formação de professores. De mesmo de modo, são muitos os temas destas áreas que ele toma como um desafio, visando desvendar as questões da formação do leitor, da autonomia, da liberdade, da pedagogia da esperança, da pedagogia do oprimido.

Obra: Paulo Freire é autor de muitas obras. Entre elas: Educação como prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1968), Cartas à Guiné-Bissau (1975), Pedagogia da esperança (1992) À sombra desta mangueira (1995).

Tudo o que a gente puder fazer, no sentido de abrir mais a escola, no sentido de provocar, pedir, desafiar estudantes, merendeiras, zeladores, vigias, diretores de escola, coordenadores pedagógicos, pais, médicos, dentistas, alunos, vizinhos da escola, tudo o que a gente puder fazer para convocar os que vivem em torno da escola e dentro da escola, no sentido de participarem, de tomarem um pouco o destino da escola na mão, também. Tudo o que a gente puder fazer nesse sentido é pouco ainda, considerando o trabalho imenso que se põe diante de nós, que é o de assumir esse país democraticamente, que é o de ter voz, o de ganhar voz e não apenas o de falar, não apenas o de dar bom-dia. Ora, o conselho de escola é um dos momentos, é um dos meios de que a gente pode se servir, se é que eu posso usar esse verbo, nessa luta pela democratização da escola e pela democratização do ensino no Brasil.

Salto – Paulo Freire, para começar essa entrevista, nós gostaríamos que você comentasse um pouco sobre esse livro que você acabou de lançar, que trata da questão da autonomia.

Paulo Freire – É, esse é o mais recente livrinho que eu acabo de lançar e que se chama: Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa. Quer dizer este livro, ou neste livro, a minha preocupação, ou uma das preocupações fundamentais, foi deixar claro que, de acordo com uma perspectiva democrática, com uma opção democrática em que eu me situo, é impossível viver a prática educativa sem perseguir, sem trabalhar no sentido da autonomia do ser, do educando e do educador. Quer dizer, no fundo, esse livro poderia também se chamar Formação Docente, poderia também se chamar Pedagogia da Liberdade, por exemplo. Eu discuto, nesse livro, alguns saberes que eu considero indispensáveis a um educador, a uma educadora, cuja opção seja uma opção de liberdade. Como, por exemplo: mudar o mundo, mudar é difícil, mas é possível. No fundo, esse livro é um apelo que eu faço a mim mesmo como educador, no sentido de um trabalho coerente com uma postura democrática, uma opção formadora, uma opção ética no esforço de, inclusive, ajudar um pouco a formação e o desenvolvimento de uma mentalidade democrática entre nós. O que me interessa fortemente neste livro não é dar receitas, mas é propor desafios, é discutir aspectos que eu considero necessários e permanentemente presentes na prática docente, que eu chamei de saberes fundamentais.

Eu vou dar alguns exemplos desses saberes que eu discuto nesse livro, num parêntese: em primeiro lugar, eu gostaria até de dizer da grande satisfação que eu tenho de não me inibir, por exemplo, de sugerir a leitura desse livro, porque ele foi lançado numa série nova que a editora Paz e Terra criou e que se chama: Lei. E o preço desse livro, ou desta série, me deixou livre para dizer que “comprem o livro”, quer dizer, o livro tem um preço bem acessível. De maneira que, então, eu não me sinto tão livre de sugerir a leitura da Pedagogia da Esperança, de Cartas a Cristina e outros livros que eu recentemente escrevi, precisamente por causa do preço, mas esse é um livro muito barato. Um dos saberes, por exemplo, que eu discuto nesse livro é o seguinte: mudar é difícil, mas é possível. Eu confesso a vocês que me vêem e que me ouvem, no momento, que se eu não estivesse convencido de que mudar é difícil, mas, mesmo difícil, mudar é possível, eu não seria professor. Quer dizer, quando eu saio de casa nas terças-feiras de tarde e vou à Universidade Católica de São Paulo, para participar de um debate, de um seminário com estudantes de Pós-Graduação, e faço isso com a mesma gostosura com que eu fazia quando eu tinha 25 anos, e hoje eu tenho 76 anos. Quando eu vou para a PUC, toda terça-feira, discutir, por exemplo, a ideologia da imobilização que nos cobre hoje, pelo mundo todo, com o neoliberalismo. Essa ideologia do fatalismo, de que mudar não é possível, de que a realidade é essa mesma, quando eu vou para a PUC discutir, eu vou precisamente porque eu estou convencido de que mudar é difícil, mas é possível.

Um outro saber que eu discuto nesse livro e que eu acho fundamental na perspectiva democrática é, por exemplo, saber escutar. Como é que pode uma pessoa ser um professor, ou uma professora se, por exemplo, entende que o tempo de sua fala é o tempo total e absoluto? Como que vai dizer que não há mais tempo, se o que escuta a sua fala não tem tempo de fala? Porque o tempo da fala de quem escuta se esgota na audição de quem fala. Quer dizer, essa propriedade do tempo, essa possibilidade do tempo para falar é uma possibilidade autoritária, é antidemocrático. Quer dizer, um professor, ou uma professora, que sonha o sonho democrático, o sonho da formação, o sonho da autonomia de si e do educando, não pode se apoderar do tempo para falar. Então, saber escutar é não apenas a expressão de uma sabedoria democrática, mas é também uma arte, quer dizer, é preciso que eu vá me constituindo na audição de quem fala. O que vale dizer: é preciso que eu limite o meu tempo de fala para que quem me escuta tenha o direito de falar também. E é na medida em que eu aprendo a escutar quem me ouve que eu falo com ele ou com ela. Na medida em que eu não aprenda a escutar quem me ouve, eu falo apenas a quem me ouve e não com quem me ouve. E falar apenas a quem (me ouve) é uma espécie de falar sobre, é um falar de cima para baixo, que termina por inibir o direito de quem escuta de falar.

Ora, e falar, falar é a forma nossa de estar sendo no mundo. Quer dizer, falar está associado a fazer porque, inclusive, historicamente, homens e mulheres inventaram a linguagem para dar nome às coisas que fizeram, ou às coisas que faziam. Quer dizer, eu falo e dou nome quando falo ao mundo que eu transformo. Então, o respeito à fala do outro implica saber escutar o outro e não posso ser um educador democrático se eu não escuto o outro. Ainda do ponto de vista do saber ou do aprender a escutar, há uma importância fundamental no saber escutar diferente. Como é que pode uma professora que se pensa democrática não dar ouvido à fala do diferente? Quer dizer, você discrimina o diferente só porque ele é diferente de você. Então, aprender a escutar o diferente, a cultura diferente, aprender a valorizar o diferente de nós é absolutamente fundamental para o exercício da autonomia. Quer dizer, a professora que fecha seus ouvidos à dor, à indecisão, à angústia, à curiosidade do diferente é a professora que mata no diferente a possibilidade de ser. Então, esse é um outro saber de que eu falo no livro. Para mim, o que é interessante também é o seguinte: é que, quando eu falo em autonomia do ser, no caso eu poderia falar na autonomia da escola, não estou de maneira nenhuma pretendendo, como eu disse antes, o isolacionismo do ser. Por exemplo, pensar na escola com autonomia não é pensar na escola licenciosa, quer dizer na escola que, enquanto ela mesma fosse dona de sua verdade, sem nenhuma preocupação com as outras escolas de cujo sistema ela e as escolas A, B ou C fazem parte. A autonomia, a minha autonomia será tão mais autêntica quanto mais eu a reconheça em relação dialógica com a tua autonomia. Quer dizer, a minha autonomia deixa de ser autêntica na medida em ela seja absorvente da autonomia dos outros. Quer dizer, eu só sou se você puder ser, se eu obstaculizo a possibilidade sua de ser, ou de estar sendo, eu também não sou, e a nossa autonomia vai para o escanteio. Quer dizer, a nossa autonomia some e é esmagada. Então, no fundo, o espírito do livro é esse. Eu queria, para terminar essa primeira pergunta que você me fez, dizer o seguinte: para mim, um dos equívocos das escolas tem sido o de sugerir, ou insinuar, ou até dizer explicitamente ao educando que a compreensão de um texto deve ser procurada pelo leitor, mas por isso mesmo, por ser procurada pelo leitor, é que a compreensão do texto é criação de quem escreve o texto. O que eu quero dizer é que não é isso, não pode ser, o leitor é também produtor da compreensão do texto que lê. Então, eu gostaria de pedir a quem possa, ou queira ler esse livro amanhã, que não desista de ler porque não entendeu na primeira página uma palavra. Se não entendeu, consulte o dicionário. Quer dizer, dicionário foi inventado para nos ajudar, para ensinar a ler e escrever, o dicionário não é um instrumento de burro como se diz... Dicionário é tão instrumento de quem escreve e lê como a pá de pedreiro é instrumento fundamental para fazer essa parede. Então, a minha sugestão é: não desistam de ler o livro como coisa difícil, antes de trabalhar o exercício da compreensão do texto que não é só problema meu, mas problema de quem lê.

Salto - O que é a escola cidadã?

Paulo Freire - Olha, a escola cidadã, no meu entender, é aquela que se assume enquanto um centro, um centro de direitos e um centro de deveres, a formação que se dá dentro do espaço e do tempo que caracterizam a escola cidadã é uma formação para a cidadania. Quer dizer, a escola cidadã é, então, a escola que viabiliza a cidadania de quem está nela e de quem vem a ela. Porque a escola cidadã não pode ser uma escola cidadã em si e para si. Ela é cidadã na medida mesmo, também, em que ela briga pela cidadania, pelo exercício e pela fabricação da cidadania de quem vem para ela, de quem usa o seu espaço. Por exemplo, seria um absurdo que se pensasse na existência de uma escola em que um professor perguntasse ao aluno rebelde se o aluno sabe com quem está falando.

Você veja, seria uma contradição enorme que uma escola, se pensando uma escola cidadã, coagisse, veja bem, eu digo coagisse, e não disse limitar-se, mas eu digo restringisse a liberdade do educando em lugar de sugerir ao educando, em lugar de sugerir ao educando que a sua liberdade precisa ser limitada para poder ser. Então a escola cidadã é uma escola coerente com a liberdade, é coerente com o seu discurso formador, com o seu discurso libertador, em outras palavras, a escola cidadã é aquela que, brigando para ser ela mesma, viabiliza ou luta para que os educandos e educadores também sejam eles mesmos. E como ninguém pode ser só, a escola cidadã é uma escola de comunidade. É uma escola de companheirismo, é uma escola de produção comum do saber e da liberdade. Mas é uma escola que não pode ser jamais licenciosa, nem jamais autoritária.
Quer dizer, é uma escola que vive a experiência tensa da democracia que, em outras palavras, implica a experiência tensa, contraditória, permanente entre autoridade e liberdade.

Uma escola cidadã seria a seguinte: é a escola que procura plenamente viver a sua autonomia de ser. Só é escola cidadã na medida em que, optando pelo exercício da cidadania, briga para constituir-se num espaço/tempo formador de cidadania.
¹ Essa gravação foi realizada em São Paulo, no Instituto Paulo Freire, para a série Projeto Político-Pedagógico da escola, apresentada no programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC, de 20/04 a 30/04 de 1997. A série teve a consultoria de Moacyr Gadotti e contou com a mediação de Gaudêncio Frigotto.

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