Salto Para o Futuro
Ana Gita
Atuação: Antropóloga, Gerente de Identificação do Departamento do Patrimônio Imaterial do IPHAN.
Obras: autora de livros e diversos artigos, dentre eles destacamos: O Mundo Transformado - Um Estudo da Cultura de Fronteira do Alto Rio Negro. 1ª. ed. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi - Coleção Eduardo Galvão, 1995.
Os bens de natureza imaterial, eles têm um caráter, uma natureza processual e dinâmica e, portanto, não podem ser preservados da mesma forma como são tratados o Patrimônio material e o patrimônio arqueológico também. Esse patrimônio imaterial, ele está assim entendido porque ele expressa, ele traduz expressões da cultura que estão para além da sensibilidade humana, dos olhos e do tato.
Salto: O que é Patrimônio Imaterial?
Ana Gita: Patrimônio Imaterial está definido na Constituição Federal de 1988, que estabelece os direitos culturais e fala do entendimento que se deve ter sobre o Patrimônio Cultural nas duas vertentes: o material e o material. Como já havia desde 1937 a Lei nº 25 que instituiu o tombamento para proteger e preservar o Patrimônio Material, as Igrejas, as casas, exemplos do Barroco, os fortes... Não havia um instrumento legal que desse conta do outro conjunto de bens, previsto por Mario de Andrade, de atribuição de significados a esses bens materiais, mas que no entanto não tinham como ser contemplados pelo tombamento. No ano 2000, orientados pela Constituição, um grupo nomeado pelo Ministro da Cultura produziu o registro, que é o Decreto 3.551, que estabelece um conjunto de normas e de regras para a preservação do Patrimônio Imaterial. Todo esse conjunto de bens relacionados a celebrações, aos lugares, aos modos de fazer. Na verdade, a noção de patrimônio material e imaterial aparece na legislação, talvez por uma questão operacional, para que se possam produzir instrumentos legais que dêem conta da natureza de cada um desses bens.
Os bens de natureza imaterial, eles têm um caráter, uma natureza processual e dinâmica e, portanto, não podem ser preservados da mesma forma como são tratados o Patrimônio material e o patrimônio arqueológico também. Esse patrimônio imaterial, ele está assim entendido porque ele expressa, ele traduz expressões da cultura que estão para além da sensibilidade humana, dos olhos e do tato. São conhecimentos, sentimentos, conhecimentos que alguns grupos detêm de transformação de raízes e remédios, a forma de estabelecer a relação com a natureza, entre os homens e com os cosmos. Enfim, são relações definidoras ou tudo que se entende por cultura. Então, a partir do encontro dessas relações, desses eixos, qualquer expressão é expressão cultural. Na verdade, o material e o imaterial, eles sempre aparecem juntos. A expressão de um sentimento ou a expressão de um conhecimento específico, ela sempre aparece num suporte material, de modo que o material e o imaterial realmente acabam sendo uma divisão apenas operacional, apenas do ponto de vista de aplicação de legislação específica, porque o patrimônio material tem uma natureza, tem que ser entendido diferentemente do patrimônio imaterial. Ele pressupõe a transformação histórica, e, não tem como você engessar a dinâmica de transformação desses bens.
Salto – A senhora pode falar da acessibilidade do que é material e do que é imaterial?
Ana Gita: Os grupos humanos produzem coisas que nós podemos considerar materiais, por exemplo, carros, geladeira, moinho de água, cadeiras, bancos. E produzem também coisas que nós podemos pensar como imateriais, que são os conhecimentos. Os conhecimentos sobre a forma de trabalhar a terra, conhecimento sobre a seleção de sementes, o conhecimento de como produzir remédios a partir de plantas encontradas na natureza, os sentimentos. Tudo isso sempre está organizado e iluminado pela cultura. Então, esses bens são considerados patrimônio imaterial e eles têm uma natureza muito específica, eles são processuais e dinâmicos, eles se transformam historicamente.
Os conhecimentos, os sentimentos, eles são passíveis de absorção de elementos externos, encontro entre culturas. Sempre há uma troca de valores e de elementos que vão transformando internamente os grupos culturais e, entre os grupos, todos vão produzindo transformações e mudanças de estilo, de entendimento. As inovações tecnológicas são um fator importantíssimo de transformação de valores na moral dos povos, na ética. Então, a partir desse ponto de vista, teve que ser pensado um sistema legal que desse conta de preservar esses conjunto de bens que não cabiam no tombamento, porque o tombamento pressupõe a imobilidade e não há como você transformar uma casa tombada, ela tem que permanecer exatamente do jeito que ela foi encontrada, ela é restaurada e ela retorna sempre para a mesma situação em que ela foi feita. Então, a transformação do tempo aí tem que ser evitada, embora a gente saiba que isso é impossível. No entanto, você não pode engessar a dinâmica e a transformação dos grupos humanos. O Decreto número 3.551, que foi pensado para dar conta desse conjunto de bens de caráter processual e dinâmico, entende que os bens se transformam e eles devem ser preservados com essa característica.
Salto – E qual o papel da educação nesse processo?
Ana Gita: O programa está baseado na pesquisa e pesquisa pressupõe educação e, enfim, escola. Nós entendemos que cultura e educação estão muito juntas. Mario de Andrade dizia que preservar o patrimônio cultural constitui tarefa de alfabetização, e aí eu acho que os nexos entre educação e cultura ficam muito claros. É como se pudesse ampliar o entendimento do mundo, naquilo que o mundo tem de geral, de universal, sem perder as características daquilo que me constitui culturalmente, localmente. Então, esse movimento entre o conhecimento universal e a valorização das tradições e dos valores locais é fundamental no processo e na construção da cidadania da qualidade de vida. E é a partir desse nexo que Mario de Andrade encaminhou seu trabalho. E fica evidente que o entendimento agora que se tem do patrimônio cultural não é mais só o patrimônio histórico e artístico, mas, agora, é que a cultura é essa totalidade, que inclui sua materialidade e sua imaterialidade. Então, são duas vertentes, na verdade, de uma mesma coisa. Nós não falamos mais em patrimônio histórico e artístico, mas falamos em patrimônio cultural para estabelecer exatamente essa distinção.
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