Salto Para o Futuro
Muniz Sodré de Araújo Cabral
Formação: Jornalista, sociólogo e professor. É Professor titular da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, no ano de 2005 foi nomeado Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura.
Obra: Dentre seus escritos destacamos: Claros e Escuros - identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1999; Reinventando a Cultura - a comunicação e seus produtos. Petrópolis, Vozes, 1997 e Mestre Bimba: Corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002.
O respeito à diversidade cultural envolve o cuidado com os níveis de vida de professores e alunos e com as expectativas de compreensão do mundo que essas pessoas têm. Portanto, para isso, para que efetivamente a escola se realize, é preciso que a escola aprenda com o entorno, que ela se abra para o entorno, isso é, é preciso uma formação permanente. E que os alunos e pais de alunos e famílias de alunos participem disso.
Salto – O que caracteriza a cultura brasileira?
Muniz Sodré – Olha, o Brasil... Digamos, a singularidade brasileira é ser um país culturalmente heterogêneo. Quer dizer, a heterogeneidade, a pluralidade cultural, é a marca mesmo distintiva no Brasil, no quadro latino-americano e mundial. E há uma certa modernidade ou pós-modernidade nesse traço brasileiro, porque hoje o que caracteriza, digamos assim, um movimento populacional nas grandes metrópoles do mundo, nos países de primeiro mundo, é a diversidade cultural. Embora a globalização seja mais financeira do que de trabalho, ou mais financeira do que migratória, há hoje um fluxo migratório entre os países de Terceiro Mundo e a Europa, ou entre os países de Terceiro Mundo mais ricos do que os outros, que faz com o que o multiculturalismo, quer dizer – a aproximação de culturas diferentes – seja uma tônica mundial. E o Brasil, nisso, se antecedeu. Porque o Brasil sempre se caracterizou por uma pluralidade de modo de vida, de aproximações simbólicas muito grandes. Portanto, sempre foi um país diverso.
Salto – Algumas pessoas falam em pluralidade cultural, outras em diversidade cultural, e também em interculturalismo. Existe alguma diferença semântica entre essas palavras?
Muniz Sodré – Existe. Veja só, o multiculturalismo é quase que uma ideologia de administração de territórios, contemporâneos. Filósofos como Habermas e sociólogos europeus, quando falam de multiculturalismo, eles estão falando da presença de imigrantes, multidiferenciados, num território de países como França, Alemanha. Digamos, os árabes – os árabes de diferentes países –, turcos, africanos... A presença desses, seja em Berlim, seja nos Estados Unidos, seja em Paris, isso está sendo designado como multiculturalismo – são muitas culturas num mesmo espaço.
O interculturalismo diz mais respeito à transferência e à influência recíproca de aproximações simbólicas entre uma cultura e outra. As trocas culturais entre um grupo e outro são chamadas de interculturalismo, ou de transculturalismo. Enquanto que o pluralismo cultural é simplesmente a diversidade cultural. Este aí é um outro sinônimo para diversidade cultural. O Brasil é culturalmente plural. Ele é culturalmente heterogêneo. Agora, São Paulo é uma cidade que, dentro dessa ideologia, que está se dizendo multiculturalista, pode ser uma cidade multiculturalista. Você vê o gueto dos japoneses, dos chineses, dos coreanos, dos turcos, dos árabes. Esse quadriculamento, essa guetificação da cidade em grupos, nacionais, diferentes, é que está se chamando de multiculturalismo. Ao mesmo tempo, é mais um movimento, digamos, simbólico do que existencial, real. Porque não existe direito coletivo para essas diferenças culturais. Não há direito coletivo. O direito é do país que abriga. O direito é sempre individual. É o direito do cidadão, e sempre ancorado na Constituição do país que recebe o estrangeiro. E o estrangeiro chega, e os seus costumes são diferentes, suas reivindicações são diferentes, mas esses grupos não têm direitos coletivos próprios. Eles não podem reivindicar seus direitos em tribunais coletivos.
Salto – Como podemos analisar as reivindicações das chamadas minorias (grupos formados por mulheres, homossexuais, negros, índios), que vêm pleiteando os seus direitos?
Muniz Sodré – Veja só, esse é um problema. O direito está mudando. Quer dizer, o direito, que sempre foi um meio de conciliar as diferenças, e as tensões na sociedade civil, o direito já não dá conta do novo tipo de reivindicação que está emergindo desde os anos 60. A reivindicação das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos índios, direito disso e daquilo. Até direito de preservação da natureza, pela primeira vez se fala que o próprio objeto tem direito. Pois, quando você diz que uma árvore tal tem que ser protegida, o sujeito de direito aí é a árvore. Isso é novo no direito, o direito ambiental. Esse tipo de reivindicação mostra que o direito clássico – os tribunais, o Judiciário – já não dá conta mais das reivindicações que surgem na sociedade nacional.
Por outro lado, freqüentemente, nesses grupos, a fala é em nome de direitos humanos. Quando a luta, efetivamente, se dá no terreno dos direitos civis, e não de direitos humanos. O direito humano é direito à vida, à preservação da vida, das condições de boa vida. Mas os direitos civis são direitos que resultam de táticas de luta, entre classes e grupos sociais dentro da sociedade civil.
Esses grupos que você mencionou freqüentemente têm como argumentação a questão dos direitos humanos, quando a luta deles deve ser nos direitos civis. Nem sempre o que é justo, no que se refere aos direitos humanos, é justo no que se refere aos direitos civis. Os direitos civis são o resultado de lutas. Então, as exigências não têm que ser lógicas. Por exemplo: quando se fala de cotas para negros. A grande parte da sociedade brasileira é contra isso: conceder cotas para negros. É contra por quê? Dizem que é porque humilha o negro. Humilhar é..., eu disse num artigo de O Globo outro dia, é ‘o sujeito entrar no edifício e mandarem ele pra porta dos fundos’. Eu sou inteiramente a favor das cotas, porque acho que essas cotas são uma pressão, contínua, do movimento negro sobre o Governo. O negro sempre foi cidadão de segunda classe, por razões históricas, embora, em termos de direitos humanos, isso possa ser humilhante, essa concessão. Do ponto de vista do direito civil é desejável que se reserve emprego para negros em determinada firma, sabendo que eles são sistematicamente excluídos, por critérios de boa aparência e não sei o quê. É uma maneira de discriminar. Acho que forçar a barra, ainda que isso pareça um pouco injusto, para os não-negros, eu acho que é justo e legítimo, do ponto de vista de conquista de direitos civis. Então, não são direitos humanos, são direitos civis. Portanto, é um lado que é preciso fortalecer politicamente. É a política que responde por isso.
Salto – Nesse contexto multicultural, qual é o lugar da cultura popular e da cultura erudita? Há realmente uma clivagem?
Muniz Sodré – Não, a divisão se dá nos modos de apropriação, no modo de exercer a produção. Não é tão no nível dos conteúdos. Grande parte da cultura que se diz popular são restos de uma cultura erudita, de uma cultura letrada, antiga. Por outro lado, há um certo tipo de coisa do povo, que parece muito ingênuo, muito bobo, e é extremamente sofisticado e erudito. Por exemplo, o candomblé, os cultos afros. Para as elites, e para quem não conhece, acha que aquilo é uma coisa de superstição, e no entanto, quando você entra no universo do candomblé, você vê que leva a vida inteira para se aprender o que está em jogo ali e não aprende, morre ali e não aprende. O erudito pode estar no popular. As interferências, as influências se dão o tempo inteiro. Agora, o modo de produzir, o modo de exercitar é o que define o popular e o que define o massivo. Eu diria que a cultura popular, hoje, está em dissenso, está em baixa. Tudo tende a ser, e eu não coloco religião, nem candomblé, isso não é cultura popular, não. Isso é um modo de uma parcela do povo se apropriar da relação com o sagrado. Mas não há duvida de que a mídia tende a absorver tudo. Quando não é a mídia, são os institutos de administração cultural do Estado, de modo que é difícil ver alguma coisa inteiramente produzida por parte do povo. É a indústria do turismo. Eu não sei mais direito o que é popular hoje. Nem mesmo o carnaval, quando um grupo de “barbies” sai às ruas, ele está contando que a mídia venha e fotografe... O olhar da mídia já está em todo lugar, no que diz respeito a entretenimento. Até nas relações pessoais, privadas.
Salto – Como a sociedade brasileira em geral, e a mídia em particular, refletem essa diversidade?
Muniz Sodré – A mídia... Veja só, como o Brasil é plural e heterogêneo, uma coisa é o pensamento das elites. As elites brasileiras não refletem diversidade nenhuma. Você conversa com o mais esclarecido dos representantes do Brasil no exterior, com os representantes da mídia, eles são racistas, pois é um país racista, discriminatório. Fortemente discriminatório. E a mídia segue esses padrões, e esses estereótipos. Claro que em função da pressão de movimentos civis, você vê a mídia tratá-los mais respeitosamente. Sejam os homossexuais, sejam os negros, sejam os indígenas. Mas com pressão, e porque algumas leis foram votadas. As leis, mesmo quando não são cumpridas, são importantes, porque são instrumentos de luta. Veja a Lei Caó, a lei anti-racismo, uma lei importante, ninguém foi condenado até hoje por racismo. Mas ela é um instrumento de luta. Então, eu não creio que pacificamente, beneficamente, a sociedade, as elites e a mídia incorporem essa diversidade. A cultura brasileira só pode ser entendida como um monopólio das idéias dominantes, ou seja, das idéias que as elites fazem sobre si mesmas. E que idéias elas fazem? Que todos são brancos, todos são descendentes de europeus, todos falam línguas estrangeiras, e não querem ver a realidade nacional que é essa coisa diferenciada. O povo, para as elites, é uma massa amorfa, catinguenta, suada e feia, e, extensivamente, negra. Portanto essa realidade é a realidade da luta das pessoas. As elites estão com os olhos voltados para os Estados Unidos, chorando a queda das duas torres, e vendo se vão passar o verão em Paris.
Salto –Em relação à escola? É possível educar para a diversidade cultural? Quais são os desafios?
É extremamente importante, porque não se pode unificar, nem afastar pessoas de classes sociais diferentes, de horizontes simbólicos e culturais diferentes, com o mesmo currículo. É preciso adaptar o currículo à diversidade dos bairros, dos territórios, para evitar a evasão escolar, que é enorme, nas periferias das cidades. É preciso poder remunerar os professores, de acordo com a especificidade da formação deles. E é na escola pública que as verdadeiras vocações democráticas se realizam. Sempre foi na escola pública. Essa foi a idéia de Anísio Teixeira: “não basta passar o saber, é preciso também passar a forma social, onde o saber se democratiza”. Isso na escola pública. Houve momentos, ainda nesse país, em que a escola pública foi forte, no Pedro II, nas universidades. Assim como se luta pela identidade, seja movimento negro, dos homossexuais, das mulheres, é preciso lutar pelo fortalecimento da educação. (...) A educação é isso, educação é relação política entre alguém que inicia e alguém que é iniciado. Só a luta civil é que pode produzir resultados. E eu acredito na luta civil.
Eu lhe dou um exemplo do que é diversidade cultural em escolas. Eu sou, eu pertenço, eu sou abaxangô de um dos maiores terreiros de candomblé do Brasil, que é o Axé Opô Afonjá na Bahia. O Axé Opô Afonjá, na Bahia, tem uma escola, a minicomunidade, que é uma escola para os meninos da comunidade, do terreiro, e do bairro de São Gonçalo do Retiro. A Prefeitura paga as professoras, mas aqueles meninos vão ali, eles aprendem, claro, a escrever a ler, Português, essas coisas; mas aprendem a plantar, aprendem a cantar as cantigas de santo, e os significados dessas cantigas, têm rudimentos de ioruba, que é a língua litúrgica de terreiro... Depois que se implantou essa escola, não tem mais evasão escolar ali.
É preciso adaptar os currículos e o que se diz na escola à especificidade da vida das pessoas. Mas você também não pode abandonar, deixar de dar o código da cultura erudita superior. Só que isso tem que ser levado com muito cuidado. Quando você fala alguma coisa, você tem que saber com quem você está falando. Quando você argumenta, você tem que ver para que público você está argumentando, senão esse público não entende. Por isso, o trabalho da universidade cultural é um trabalho de formação diferenciada de professores.
Salto – O que a escola teria a aprender com os diversos grupos sociais que compõem a nossa sociedade?
Muniz Sodré – Qualquer professor, em qualquer escola, só ensina quando aprende com o aluno. Na tese... aprender, na verdade, é ensinar e aprender ao mesmo tempo. Você só é professor quando você está aprendendo, e está crescendo junto com o aluno. Em instituição escolar também, na medida em que ela olha para a comunidade, que ela olha para o grupo.
Uma escola que respeita a diversidade cultural, ela tem que levar em conta que a cultura não é só assunto de elevação do espírito, da cabeça, é assunto que diz respeito à barriga também, diz respeito às condições materiais. Então, digamos, uma escola que não respeite, ou que não leve em conta a condição material, o que os alunos comem... Ou um sistema escolar que não leve em conta que o professor, para poder dar aula ali, tem também que comer, pagar o seu transporte, tanto a questão de salário do professor, numa questão sindical. Não pode ser apenas uma questão sindical. O salário do professor tem que ser uma questão existencial: que lição de vida, de existência, o sujeito pode passar, se o sujeito não comeu em casa, se o sujeito não teve dinheiro para pagar sua condução? A diversidade cultural, o respeito à diversidade cultural, envolve o cuidado com os níveis de vida de professores e alunos, e com as expectativas de compreensão do mundo que essas pessoas têm. Portanto, para isso, para que efetivamente a escola se realize, é preciso que a escola aprenda com o entorno, que ela se abra para o entorno, isso é, é preciso uma formação permanente. E que os alunos e pais de alunos e famílias de alunos participem disso.
Então, para montar uma escola, tem que lutar, e as pessoas não entendem, que a luta pela condição de vida do professor e da escola, tem que ser uma luta política, junto com pais, com famílias. Por isso é que é não é bem entendida a questão da educação. Educação é uma questão, ao mesmo tempo, cultural e política. Não é possível falar de cultura fora de política. Agora, não é política partidária, de partido. Partido político brasileiro gira só em torno dos seus interesses mesmo. É política no sentido de saber como agir, como ser livre, como agir criativamente, como agir com liberdade. Isso é que é política. Quando nós entendemos política como livre agir, como agir com livre iniciativa, a partir de interesses dos grupos particulares, aí nós vemos que a educação e que a cultura têm que estar ligadas ao livre agir político.
A diversidade cultural, o pensamento da diversidade cultural, é um pensamento também político, senão não é nada. Ele é, ao mesmo tempo, cultural, educacional e político.
Salto – Como é que a escola pode cumprir o papel de ser a organizadora dessa inclusão social?
Muniz Sodré – Veja só, a idéia de minoria, o conceito de minoria é a idéia da tomada da palavra, e a idéia de tomar a palavra. Minoria não é nunca quantitativa. Minoria é uma certa qualidade do agir político. Então, como é que sabemos que um grupo é minoria? É porque um grupo estava calado e passou a falar, passou a se expressar. Quem não fala é infantilizado, é isso que quer dizer infância – aquele que não fala. A minoria é um grupo que tenta crescer, que tenta falar, que tenta se expandir. Como é que a escola pode incluir as minorias, mesmo a escola primária? Como a escola básica, fundamental, pode se tornar fórum de repercussão das inquietações, das angústias das crianças e de suas famílias? A mesma coisa com a universidade, com a escola secundária. Inclusão de minorias é a criação de espaço de fala, de um espaço de discussão de cada um, e isso é que é difícil fazer na escola. Porque a escola se constitui apenas como lugar de transmissão de conhecimentos.
Salto – Para finalizar a entrevista, gostaríamos de ouvir a sua opinião sobre a importância dos movimentos organizados para a sociedade, de uma maneira em geral.
Muniz Sodré – O que há de permanente no social é a mudança e o conflito, junto com a permanência das situações instituídas do status quo. Nós assistimos o social como um local de um conflito permanente. E conflito em latim quer dizer choque, batida. Quando você tem uma batida, você tem um choque, você tem um conflito. Qual é a dinâmica do conflito? É a luta. A luta é aquilo que, no conflito, há de indeterminável, é aquilo que não se apreende por inteiro, que não se determina por inteiro, que é a luta. Então, a luta não é necessariamente violenta, a luta é o embate, é o indeterminável. Essas bandeiras que você fala, são, digamos, os sinais, os índices, de que há luta e conflito social. O conflito não está parado, não está estagnado. Cada bandeira dessa que aparece é como conter fumaça, ou seja ali tem fogo, essa bandeira é a fumaça que mostra que o fogo da luta está aceso, que há o fogo em movimento. Portanto, essas bandeiras são sinais de vitalidade do corpo social. Seja qual for a bandeira. A bandeira que se levanta é o sinal de vitalidade do corpo social. Até a bandeira da extrema direita, quando levanta, você diz: “olha, os caras estão se bulindo ali, estão vivos, vamos fazer face a esses caras”. Todas as bandeiras são sinais da vitalidade da luta, num conflito social.
Obra: Dentre seus escritos destacamos: Claros e Escuros - identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1999; Reinventando a Cultura - a comunicação e seus produtos. Petrópolis, Vozes, 1997 e Mestre Bimba: Corpo de mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002.
O respeito à diversidade cultural envolve o cuidado com os níveis de vida de professores e alunos e com as expectativas de compreensão do mundo que essas pessoas têm. Portanto, para isso, para que efetivamente a escola se realize, é preciso que a escola aprenda com o entorno, que ela se abra para o entorno, isso é, é preciso uma formação permanente. E que os alunos e pais de alunos e famílias de alunos participem disso.
Salto – O que caracteriza a cultura brasileira?
Muniz Sodré – Olha, o Brasil... Digamos, a singularidade brasileira é ser um país culturalmente heterogêneo. Quer dizer, a heterogeneidade, a pluralidade cultural, é a marca mesmo distintiva no Brasil, no quadro latino-americano e mundial. E há uma certa modernidade ou pós-modernidade nesse traço brasileiro, porque hoje o que caracteriza, digamos assim, um movimento populacional nas grandes metrópoles do mundo, nos países de primeiro mundo, é a diversidade cultural. Embora a globalização seja mais financeira do que de trabalho, ou mais financeira do que migratória, há hoje um fluxo migratório entre os países de Terceiro Mundo e a Europa, ou entre os países de Terceiro Mundo mais ricos do que os outros, que faz com o que o multiculturalismo, quer dizer – a aproximação de culturas diferentes – seja uma tônica mundial. E o Brasil, nisso, se antecedeu. Porque o Brasil sempre se caracterizou por uma pluralidade de modo de vida, de aproximações simbólicas muito grandes. Portanto, sempre foi um país diverso.
Salto – Algumas pessoas falam em pluralidade cultural, outras em diversidade cultural, e também em interculturalismo. Existe alguma diferença semântica entre essas palavras?
Muniz Sodré – Existe. Veja só, o multiculturalismo é quase que uma ideologia de administração de territórios, contemporâneos. Filósofos como Habermas e sociólogos europeus, quando falam de multiculturalismo, eles estão falando da presença de imigrantes, multidiferenciados, num território de países como França, Alemanha. Digamos, os árabes – os árabes de diferentes países –, turcos, africanos... A presença desses, seja em Berlim, seja nos Estados Unidos, seja em Paris, isso está sendo designado como multiculturalismo – são muitas culturas num mesmo espaço.
O interculturalismo diz mais respeito à transferência e à influência recíproca de aproximações simbólicas entre uma cultura e outra. As trocas culturais entre um grupo e outro são chamadas de interculturalismo, ou de transculturalismo. Enquanto que o pluralismo cultural é simplesmente a diversidade cultural. Este aí é um outro sinônimo para diversidade cultural. O Brasil é culturalmente plural. Ele é culturalmente heterogêneo. Agora, São Paulo é uma cidade que, dentro dessa ideologia, que está se dizendo multiculturalista, pode ser uma cidade multiculturalista. Você vê o gueto dos japoneses, dos chineses, dos coreanos, dos turcos, dos árabes. Esse quadriculamento, essa guetificação da cidade em grupos, nacionais, diferentes, é que está se chamando de multiculturalismo. Ao mesmo tempo, é mais um movimento, digamos, simbólico do que existencial, real. Porque não existe direito coletivo para essas diferenças culturais. Não há direito coletivo. O direito é do país que abriga. O direito é sempre individual. É o direito do cidadão, e sempre ancorado na Constituição do país que recebe o estrangeiro. E o estrangeiro chega, e os seus costumes são diferentes, suas reivindicações são diferentes, mas esses grupos não têm direitos coletivos próprios. Eles não podem reivindicar seus direitos em tribunais coletivos.
Salto – Como podemos analisar as reivindicações das chamadas minorias (grupos formados por mulheres, homossexuais, negros, índios), que vêm pleiteando os seus direitos?
Muniz Sodré – Veja só, esse é um problema. O direito está mudando. Quer dizer, o direito, que sempre foi um meio de conciliar as diferenças, e as tensões na sociedade civil, o direito já não dá conta do novo tipo de reivindicação que está emergindo desde os anos 60. A reivindicação das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos índios, direito disso e daquilo. Até direito de preservação da natureza, pela primeira vez se fala que o próprio objeto tem direito. Pois, quando você diz que uma árvore tal tem que ser protegida, o sujeito de direito aí é a árvore. Isso é novo no direito, o direito ambiental. Esse tipo de reivindicação mostra que o direito clássico – os tribunais, o Judiciário – já não dá conta mais das reivindicações que surgem na sociedade nacional.
Por outro lado, freqüentemente, nesses grupos, a fala é em nome de direitos humanos. Quando a luta, efetivamente, se dá no terreno dos direitos civis, e não de direitos humanos. O direito humano é direito à vida, à preservação da vida, das condições de boa vida. Mas os direitos civis são direitos que resultam de táticas de luta, entre classes e grupos sociais dentro da sociedade civil.
Esses grupos que você mencionou freqüentemente têm como argumentação a questão dos direitos humanos, quando a luta deles deve ser nos direitos civis. Nem sempre o que é justo, no que se refere aos direitos humanos, é justo no que se refere aos direitos civis. Os direitos civis são o resultado de lutas. Então, as exigências não têm que ser lógicas. Por exemplo: quando se fala de cotas para negros. A grande parte da sociedade brasileira é contra isso: conceder cotas para negros. É contra por quê? Dizem que é porque humilha o negro. Humilhar é..., eu disse num artigo de O Globo outro dia, é ‘o sujeito entrar no edifício e mandarem ele pra porta dos fundos’. Eu sou inteiramente a favor das cotas, porque acho que essas cotas são uma pressão, contínua, do movimento negro sobre o Governo. O negro sempre foi cidadão de segunda classe, por razões históricas, embora, em termos de direitos humanos, isso possa ser humilhante, essa concessão. Do ponto de vista do direito civil é desejável que se reserve emprego para negros em determinada firma, sabendo que eles são sistematicamente excluídos, por critérios de boa aparência e não sei o quê. É uma maneira de discriminar. Acho que forçar a barra, ainda que isso pareça um pouco injusto, para os não-negros, eu acho que é justo e legítimo, do ponto de vista de conquista de direitos civis. Então, não são direitos humanos, são direitos civis. Portanto, é um lado que é preciso fortalecer politicamente. É a política que responde por isso.
Salto – Nesse contexto multicultural, qual é o lugar da cultura popular e da cultura erudita? Há realmente uma clivagem?
Muniz Sodré – Não, a divisão se dá nos modos de apropriação, no modo de exercer a produção. Não é tão no nível dos conteúdos. Grande parte da cultura que se diz popular são restos de uma cultura erudita, de uma cultura letrada, antiga. Por outro lado, há um certo tipo de coisa do povo, que parece muito ingênuo, muito bobo, e é extremamente sofisticado e erudito. Por exemplo, o candomblé, os cultos afros. Para as elites, e para quem não conhece, acha que aquilo é uma coisa de superstição, e no entanto, quando você entra no universo do candomblé, você vê que leva a vida inteira para se aprender o que está em jogo ali e não aprende, morre ali e não aprende. O erudito pode estar no popular. As interferências, as influências se dão o tempo inteiro. Agora, o modo de produzir, o modo de exercitar é o que define o popular e o que define o massivo. Eu diria que a cultura popular, hoje, está em dissenso, está em baixa. Tudo tende a ser, e eu não coloco religião, nem candomblé, isso não é cultura popular, não. Isso é um modo de uma parcela do povo se apropriar da relação com o sagrado. Mas não há duvida de que a mídia tende a absorver tudo. Quando não é a mídia, são os institutos de administração cultural do Estado, de modo que é difícil ver alguma coisa inteiramente produzida por parte do povo. É a indústria do turismo. Eu não sei mais direito o que é popular hoje. Nem mesmo o carnaval, quando um grupo de “barbies” sai às ruas, ele está contando que a mídia venha e fotografe... O olhar da mídia já está em todo lugar, no que diz respeito a entretenimento. Até nas relações pessoais, privadas.
Salto – Como a sociedade brasileira em geral, e a mídia em particular, refletem essa diversidade?
Muniz Sodré – A mídia... Veja só, como o Brasil é plural e heterogêneo, uma coisa é o pensamento das elites. As elites brasileiras não refletem diversidade nenhuma. Você conversa com o mais esclarecido dos representantes do Brasil no exterior, com os representantes da mídia, eles são racistas, pois é um país racista, discriminatório. Fortemente discriminatório. E a mídia segue esses padrões, e esses estereótipos. Claro que em função da pressão de movimentos civis, você vê a mídia tratá-los mais respeitosamente. Sejam os homossexuais, sejam os negros, sejam os indígenas. Mas com pressão, e porque algumas leis foram votadas. As leis, mesmo quando não são cumpridas, são importantes, porque são instrumentos de luta. Veja a Lei Caó, a lei anti-racismo, uma lei importante, ninguém foi condenado até hoje por racismo. Mas ela é um instrumento de luta. Então, eu não creio que pacificamente, beneficamente, a sociedade, as elites e a mídia incorporem essa diversidade. A cultura brasileira só pode ser entendida como um monopólio das idéias dominantes, ou seja, das idéias que as elites fazem sobre si mesmas. E que idéias elas fazem? Que todos são brancos, todos são descendentes de europeus, todos falam línguas estrangeiras, e não querem ver a realidade nacional que é essa coisa diferenciada. O povo, para as elites, é uma massa amorfa, catinguenta, suada e feia, e, extensivamente, negra. Portanto essa realidade é a realidade da luta das pessoas. As elites estão com os olhos voltados para os Estados Unidos, chorando a queda das duas torres, e vendo se vão passar o verão em Paris.
Salto –Em relação à escola? É possível educar para a diversidade cultural? Quais são os desafios?
É extremamente importante, porque não se pode unificar, nem afastar pessoas de classes sociais diferentes, de horizontes simbólicos e culturais diferentes, com o mesmo currículo. É preciso adaptar o currículo à diversidade dos bairros, dos territórios, para evitar a evasão escolar, que é enorme, nas periferias das cidades. É preciso poder remunerar os professores, de acordo com a especificidade da formação deles. E é na escola pública que as verdadeiras vocações democráticas se realizam. Sempre foi na escola pública. Essa foi a idéia de Anísio Teixeira: “não basta passar o saber, é preciso também passar a forma social, onde o saber se democratiza”. Isso na escola pública. Houve momentos, ainda nesse país, em que a escola pública foi forte, no Pedro II, nas universidades. Assim como se luta pela identidade, seja movimento negro, dos homossexuais, das mulheres, é preciso lutar pelo fortalecimento da educação. (...) A educação é isso, educação é relação política entre alguém que inicia e alguém que é iniciado. Só a luta civil é que pode produzir resultados. E eu acredito na luta civil.
Eu lhe dou um exemplo do que é diversidade cultural em escolas. Eu sou, eu pertenço, eu sou abaxangô de um dos maiores terreiros de candomblé do Brasil, que é o Axé Opô Afonjá na Bahia. O Axé Opô Afonjá, na Bahia, tem uma escola, a minicomunidade, que é uma escola para os meninos da comunidade, do terreiro, e do bairro de São Gonçalo do Retiro. A Prefeitura paga as professoras, mas aqueles meninos vão ali, eles aprendem, claro, a escrever a ler, Português, essas coisas; mas aprendem a plantar, aprendem a cantar as cantigas de santo, e os significados dessas cantigas, têm rudimentos de ioruba, que é a língua litúrgica de terreiro... Depois que se implantou essa escola, não tem mais evasão escolar ali.
É preciso adaptar os currículos e o que se diz na escola à especificidade da vida das pessoas. Mas você também não pode abandonar, deixar de dar o código da cultura erudita superior. Só que isso tem que ser levado com muito cuidado. Quando você fala alguma coisa, você tem que saber com quem você está falando. Quando você argumenta, você tem que ver para que público você está argumentando, senão esse público não entende. Por isso, o trabalho da universidade cultural é um trabalho de formação diferenciada de professores.
Salto – O que a escola teria a aprender com os diversos grupos sociais que compõem a nossa sociedade?
Muniz Sodré – Qualquer professor, em qualquer escola, só ensina quando aprende com o aluno. Na tese... aprender, na verdade, é ensinar e aprender ao mesmo tempo. Você só é professor quando você está aprendendo, e está crescendo junto com o aluno. Em instituição escolar também, na medida em que ela olha para a comunidade, que ela olha para o grupo.
Uma escola que respeita a diversidade cultural, ela tem que levar em conta que a cultura não é só assunto de elevação do espírito, da cabeça, é assunto que diz respeito à barriga também, diz respeito às condições materiais. Então, digamos, uma escola que não respeite, ou que não leve em conta a condição material, o que os alunos comem... Ou um sistema escolar que não leve em conta que o professor, para poder dar aula ali, tem também que comer, pagar o seu transporte, tanto a questão de salário do professor, numa questão sindical. Não pode ser apenas uma questão sindical. O salário do professor tem que ser uma questão existencial: que lição de vida, de existência, o sujeito pode passar, se o sujeito não comeu em casa, se o sujeito não teve dinheiro para pagar sua condução? A diversidade cultural, o respeito à diversidade cultural, envolve o cuidado com os níveis de vida de professores e alunos, e com as expectativas de compreensão do mundo que essas pessoas têm. Portanto, para isso, para que efetivamente a escola se realize, é preciso que a escola aprenda com o entorno, que ela se abra para o entorno, isso é, é preciso uma formação permanente. E que os alunos e pais de alunos e famílias de alunos participem disso.
Então, para montar uma escola, tem que lutar, e as pessoas não entendem, que a luta pela condição de vida do professor e da escola, tem que ser uma luta política, junto com pais, com famílias. Por isso é que é não é bem entendida a questão da educação. Educação é uma questão, ao mesmo tempo, cultural e política. Não é possível falar de cultura fora de política. Agora, não é política partidária, de partido. Partido político brasileiro gira só em torno dos seus interesses mesmo. É política no sentido de saber como agir, como ser livre, como agir criativamente, como agir com liberdade. Isso é que é política. Quando nós entendemos política como livre agir, como agir com livre iniciativa, a partir de interesses dos grupos particulares, aí nós vemos que a educação e que a cultura têm que estar ligadas ao livre agir político.
A diversidade cultural, o pensamento da diversidade cultural, é um pensamento também político, senão não é nada. Ele é, ao mesmo tempo, cultural, educacional e político.
Salto – Como é que a escola pode cumprir o papel de ser a organizadora dessa inclusão social?
Muniz Sodré – Veja só, a idéia de minoria, o conceito de minoria é a idéia da tomada da palavra, e a idéia de tomar a palavra. Minoria não é nunca quantitativa. Minoria é uma certa qualidade do agir político. Então, como é que sabemos que um grupo é minoria? É porque um grupo estava calado e passou a falar, passou a se expressar. Quem não fala é infantilizado, é isso que quer dizer infância – aquele que não fala. A minoria é um grupo que tenta crescer, que tenta falar, que tenta se expandir. Como é que a escola pode incluir as minorias, mesmo a escola primária? Como a escola básica, fundamental, pode se tornar fórum de repercussão das inquietações, das angústias das crianças e de suas famílias? A mesma coisa com a universidade, com a escola secundária. Inclusão de minorias é a criação de espaço de fala, de um espaço de discussão de cada um, e isso é que é difícil fazer na escola. Porque a escola se constitui apenas como lugar de transmissão de conhecimentos.
Salto – Para finalizar a entrevista, gostaríamos de ouvir a sua opinião sobre a importância dos movimentos organizados para a sociedade, de uma maneira em geral.
Muniz Sodré – O que há de permanente no social é a mudança e o conflito, junto com a permanência das situações instituídas do status quo. Nós assistimos o social como um local de um conflito permanente. E conflito em latim quer dizer choque, batida. Quando você tem uma batida, você tem um choque, você tem um conflito. Qual é a dinâmica do conflito? É a luta. A luta é aquilo que, no conflito, há de indeterminável, é aquilo que não se apreende por inteiro, que não se determina por inteiro, que é a luta. Então, a luta não é necessariamente violenta, a luta é o embate, é o indeterminável. Essas bandeiras que você fala, são, digamos, os sinais, os índices, de que há luta e conflito social. O conflito não está parado, não está estagnado. Cada bandeira dessa que aparece é como conter fumaça, ou seja ali tem fogo, essa bandeira é a fumaça que mostra que o fogo da luta está aceso, que há o fogo em movimento. Portanto, essas bandeiras são sinais de vitalidade do corpo social. Seja qual for a bandeira. A bandeira que se levanta é o sinal de vitalidade do corpo social. Até a bandeira da extrema direita, quando levanta, você diz: “olha, os caras estão se bulindo ali, estão vivos, vamos fazer face a esses caras”. Todas as bandeiras são sinais da vitalidade da luta, num conflito social.
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