quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O mastim de Putin na Europa

24 de setembro de 2008
Entrevista: Dimitri Rogozin
O embaixador da Rússia junto à Otan diz quea Geórgia começou a guerra na Ossétia do Sul e acusa os Estados Unidos de estarem por trásda instabilidade no Cáucaso.

Ao aceitar a indicação para ser embaixador da Rússia junto à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental), posto que assumiu em janeiro deste ano, Dimitri Rogozin, de 44 anos, parecia destinado a sumir do noticiário. Em seu país, ele fazia barulho fundando e liderando partidos ultranacionalistas, um dos quais banido das últimas eleições parlamentares por veicular na TV uma propaganda ofensiva contra imigrantes. A invasão da Geórgia pela Rússia, no mês passado, deu a Rogozin a oportunidade de exibir novamente seu estilo ácido de fazer política – ou, no caso, diplomacia. Quando a Otan, liderada pelos Estados Unidos, mandou navios com ajuda humanitária para as vítimas do conflito, ele soltou uma das suas contra o presidente da Geórgia: "Estão levando papel higiênico para o presidente Mikhail Saakashvili". A confusão no Cáucaso deve se estender. Há duas semanas, a Rússia anunciou que vai manter, por tempo indeterminado, 7 600 soldados na Ossétia do Sul e na Abkházia, regiões separatistas do país vizinho. Rogozin concedeu a seguinte entrevista a VEJA, de seu escritório em Bruxelas, na Bélgica:


A guerra na Geórgia foi provocada pela Rússia?Não. A guerra começou porque a Geórgia quis – e quer – resolver todos os problemas étnicos em seu território com agressões militares. Em abril deste ano, durante uma reunião em Bucareste, na Romênia, os membros da Otan declararam que a Geórgia e a Ucrânia estavam aptas a integrar a aliança militar ocidental. Essa afirmação deu impulso à tensão no Cáucaso e foi interpretada pelo presidente georgiano Mikhail Saakashvili como uma licença para atacar a Ossétia do Sul e assassinar muita gente na região. Saakashvili deve ter pensado que, a partir daquele momento, poderia fazer o que quisesse, sem prestar contas a ninguém. A Otan tem de admitir sua responsabilidade ao propiciar as matanças perpetradas por Saakashvili.


Duas semanas depois do fim do conflito, Moscou reconheceu a independência da Abkházia e da Ossétia do Sul, regiões separatistas da Geórgia. A guerra não forneceu um pretexto para uma antiga ambição russa?Tudo o que aconteceu na Geórgia foi contra a nossa vontade. Não há dúvida de que o surgimento de dois novos países é um processo complicado. Mas ele é irreversível: trata-se da única maneira possível de defesa dos cidadãos da região. Depois da agressão de Saakashvili, todo mundo viu que não se pode conversar com esse senhor da guerra no Cáucaso. Dele, é possível esperar atitudes ainda piores. A independência dos dois ex-territórios georgianos é a condição para a paz.

A Abkházia e a Ossétia do Sul serão incorporadas ao território russo?Não, não e não. Ao contrário, o processo de independência em curso nas duas repúblicas demonstra que a Rússia não tem nenhum desejo de anexar tais territórios.


A Rússia diz que seus soldados entraram na Geórgia para defender os ossetas. O que eles estão fazendo, agora, para impedir a vingança das milícias separatistas contra os georgianos que vivem na Ossétia do Sul?Não temos conhecimento de tudo o que ocorre na Ossétia do Sul. Mas, com a criação de uma nação livre, poderemos cobrar dos dirigentes da nova república explicações sobre os erros cometidos dentro de seus limites. É por esse motivo que a Rússia tem muito interesse em apoiar o surgimento de democracias fortes na Ossétia do Sul e na Abkházia.
O presidente George W. Bush enviou navios militares ao Mar Negro para entregar ajuda humanitária à Geórgia e anunciou um pacote de 1 bilhão de dólares para a reconstrução do país.


Como o senhor vê a atuação dos Estados Unidos no episódio?A maneira como os Estados Unidos agiram nas últimas semanas demonstra que o país é um patrocinador militar e político de Saakashvili e de suas agressões contra os ossetas. É uma pena, mas é essa a verdade. Saakashvili é uma figura terrível não só para os cidadãos russos e para os pequenos povos da Ossétia e da Abkházia. Ele é uma figura terrível para o seu próprio país. Durante o seu mandato, a Geórgia corre o risco de perder parte considerável do seu território. Esse é o preço da agressão. A culpa é inteiramente de Saakashvili. Não se pode manter no poder alguém tão irresponsável como ele.


O que representa para a Rússia a decisão dos Estados Unidos de instalar um escudo antimíssil na
Polônia, confirmada em um acordo assinado poucos dias depois do fim da guerra?Trata-se de uma tentativa dos Estados Unidos de criar um problema a mais em nossas fronteiras e neutralizar nossa capacidade nuclear. Por isso é preciso buscar, de nossa parte, uma resposta a essa provocação.

A Rússia anunciou que vai fazer, ainda neste ano, manobras navais com a Venezuela, as primeiras no Caribe desde o fim da Guerra Fria. Na semana passada, aviões russos já realizaram exercícios militares na região. Trata-se de uma resposta ao escudo antimíssil e à presença da Otan no Mar Negro?O porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Rússia informou que a decisão de mandar uma esquadra para a Venezuela precede o conflito com a Geórgia. Quanto às relações entre a Rússia e a Otan, de fato não estão muito boas. Esperávamos uma posição mais clara e sincera da organização sobre os assuntos no Cáucaso. Se a Otan mantiver a ajuda militar, política e moral às agressões da Geórgia contra os pequenos povos do Cáucaso, não poderemos considerá-la nossa parceira.


Isso pode significar o início de uma nova Guerra Fria entre a Rússia e o Ocidente?Graças a Deus, não acredito que possa começar uma nova Guerra Fria. A Rússia não tem nenhum interesse nisso e espero que nossos parceiros também não. Mas, se a Otan quiser continuar a existir, terá de se modificar. A Otan (criada após a II Guerra Mundial para fazer frente à União Soviética) não pode continuar sendo uma aliança em bloco como é hoje. Devemos neutralizar todos os esforços para a manutenção na Europa das linhas vermelhas (uma fronteira estratégica traçada por Moscou após o fim da União Soviética, englobando países de sua esfera de influência). Se não houver uma relação muito estreita entre a Rússia e os europeus, não se poderá construir a paz a longo prazo. Os russos sempre serão obrigados a manter uma postura defensiva em relação ao Ocidente.


O senhor comparou Saakashvili a Gavrilo Princip, o sérvio que matou o arquiduque da Áustria, em 1914, dando início à I Guerra Mundial. Não é um exagero retórico?Até recentemente, pensávamos que éramos capazes de evitar conflitos na Europa. Agora, não podemos mais ter essa certeza. Os acontecimentos na Geórgia demonstraram que uma única pessoa pode destruir o mundo. A arquitetura da paz construída após a II Guerra Mundial não existe mais. Há que se discutir um novo caminho para garantir a tranqüilidade no continente.




Quando começou o conflito na Geórgia, os Estados Unidos ameaçaram dificultar a entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa possibilidade preocupa os russos?Neste momento, a entrada na OMC não é o objetivo principal da Rússia. Tudo depende das condições impostas para o nosso ingresso. Está claro que as condições para a nossa entrada na OMC não são as mesmas exigidas de outros países. Há aí um exemplo da discriminação contra nós. De qualquer forma, nossos produtos mais importantes são petróleo e gás natural. Como não temos concorrentes nesse setor, não ser aceito na OMC está longe de representar um grande problema para a Rússia. Podemos esperar.



Numa reunião de emergência, no início do mês, os governantes da União Européia decidiram não impor sanções contra a Rússia, como punição pela guerra na Geórgia. O que isso revela sobre as relações entre a Europa e a Rússia?Uma parte da Rússia está e sempre estará dentro da Europa. Não é mais possível dividir a Europa em duas partes. A Rússia tem relações econômicas profundas com a União Européia. Por isso, medidas-bumerangue, que vão e voltam com a mesma intensidade, não podem ser lançadas contra nossos interesses. Eventuais sanções contra a Rússia seriam sanções contra a própria Europa.
A União Européia parece ter medo de que a Rússia corte o fornecimento de gás natural para os países do bloco.Nós não podemos retaliar ninguém no campo das relações energéticas, porque, da mesma forma que a Europa é dependente do petróleo e do gás natural da Rússia, nós dependemos dos europeus para que comprem esses produtos. Como partilhamos interesses, a Rússia jamais discutirá o problema nesses termos.


As relações de seu país com a Otan foram suspensas, mas a Rússia manteve a cooperação com a aliança no Afeganistão. Por quê?Porque no Afeganistão temos uma ameaça que é o movimento talibã. Como o terrorismo fundamentalista também preocupa a Rússia, o talibã é um inimigo comum.


Por que é tão ruim para a Rússia que a Ucrânia ou a Geórgia entrem na Otan?No caso da Ucrânia, é preciso deixar claro, antes de mais nada, que o povo não quer a entrada do país na aliança militar ocidental. As pesquisas de opinião mostram que 70% da população é contra. Seria, portanto, uma decisão antidemocrática. Para nós é ruim porque a Ucrânia e a Rússia são partes de uma mesma família. Temos uma ligação histórica, de um povo dividido em dois países. Por isso, Ucrânia e Rússia não podem estar em diferentes blocos. Ou ingressamos ambos na Otan, ou nenhum dos dois entra. Além disso, a Rússia tem uma base naval em Sebastopol, na Criméia. Em 1997, fizemos um acordo com a Ucrânia para manter a base ali. Sebastopol serve ao mesmo tempo como uma base e uma cidade russa. Ninguém pode imaginar o destino do lugar sem a presença da nossa frota. Quanto à Geórgia, Saakashvili organizou um referendo há oito meses para decidir sobre a entrada na Otan, mas sem a participação da população da Ossétia e da Abkházia. Oficialmente, 70% votaram a favor da Otan. A verdade é outra, porque o referendo não contou com o voto de metade do povo georgiano. Os ossetas e os abkhazes também não querem entrar na aliança ocidental. Para completar, na Otan há uma regra: é proibido convidar países com disputas territoriais internas para participar da organização.


Quem manda na Rússia: o primeiro-ministro Vladimir Putin ou o presidente Dimitri Medvedev?Ninguém conhece, de maneira profunda, as relações existentes entre Medvedev e Putin. São amigos e, por isso, teremos a continuação da política elaborada por Putin. Medvedev é jovem, inteligente e tem suas próprias opiniões sobre política interna e externa. O caminho que o país está seguindo, no entanto, é o da política de Putin. Pode-se dizer que Medvedev é um pouco mais moderado, pelo menos na maneira de administrar as coisas.

Uma reportagem do jornal americano The New York Times diz que o senhor tinha um retrato de Stalin em seu escritório em Bruxelas. Em uma visita aos Estados Unidos, o senhor o teria dado de presente ao ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger.Essa foi uma piada que o repórter do jornal levou a sério. Eu tenho no meu escritório retratos de Putin, Medvedev e do ministro das Relações Exteriores de meu país. Nunca dei nenhum retrato de Stalin a Kissinger.
http://veja.abril.com.br/240908/entrevista.shtml

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