domingo, 26 de outubro de 2008

Ana Maria Mauad -

Salto Para o Futuro
Ana Maria Mauad

Atuação: Professora do Departamento de História e Pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense.

Obras: Autora de livros e diversos artigos, dentre eles: Sob o signo da imagem: A produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, da classe dominante, na cidade do Rio de Janeiro. 1. ed. Niterói: LABHOI/UFF, 2002. v. 1. 465 p.

À medida que as sociedades se tornam mais complexas do ponto de vista da própria organização das suas atividades sociais e os grupos também se tornam mais diversificados, você vai começar a ter disputas em torno da identidade. E a memória vai ter um papel fundamental, no sentido de criar essa identidade social e de estabelecer, às vezes dentro do próprio grupo, parâmetros para gerenciar os conflitos sociais. Não há história sem memória, mas as duas coisas não são sinônimos.

Salto: O que é memória do ponto de vista histórico?

Ana Maria: Do ponto de vista histórico, a gente trabalha com a memória a partir dos referenciais históricos que são importantes. Fundamentalmente, você tem uma memória individual, que é uma memória “co-dividida”, que está cada vez mais se tornando objeto da História, na medida em que você está recuperando um pouco o papel do indivíduo nos processos sociais. Por outro lado, a gente trabalha com uma memória social, que longe de ser o somatório das memórias individuais, a memória social ela está ligada ao sentido de comunidade, à construção das identidades sociais e aos processos sociais como um todo.

Salto: Qual é a diferença entre memória social e a memória coletiva?

Ana Maria: A memória coletiva é um conceito que está ligado a uma determinada abordagem da memória social e que tem uma linha de perfil sociológico com a Sociologia do Durkheim, que pensa que as comunidades, elas são o somatório dessas memórias individuais, a partir de uma espécie de identidade coletiva. Essa abordagem foi muito criticada e a noção de memória coletiva, ela está sendo superada pela noção de memória social. Ou seja, são os atores sociais vivendo em comunidade que elaboram e processam essa memória, que tem a ver com a comunidade, com um conjunto de pessoas vivendo ao longo de um determinado tempo. Pode ser uma geração, podem ser várias gerações. Então, essa noção de memória social, ela vem dar uma complexidade à noção de coletivo, na medida em que você caracteriza melhor esse sentido do espaço aonde essa memória é gerada. Nada é gerado espontaneamente, existe um processo social através do qual essas memórias são operadas.
Fundamentalmente, a discussão sobre memória superou a noção de memória coletiva, na medida em que você dá identidade à voz dos atores sociais. Então, quando você trabalha com essa identidade múltipla, essa identidade trans-individual, você está, necessariamente, trabalhando com uma abordagem mais social. Trabalhando o grupo humano como um grupo social que envolve representações, códigos de comportamento e, também uma operação ao longo do tempo. A noção de geração é muito importante para a discussão sobre memória social.

Salto: O que significa a memória para a História?

Ana Maria: É uma discussão que vem se consolidando no Brasil, a partir dos anos 80, com o processo de redemocratização. É a necessidade que as sociedades que saem de períodos autoritários, de períodos traumáticos, têm de fazer lembrar. Então, o movimento social trouxe à tona a discussão sobre memória. No campo dos estudos históricos, a preocupação em tomar essa memória como objeto da História significa, necessariamente, criar um problematização. Ou seja, transformar essa memória plural, quer seja a partir da trajetória dos indivíduos, como as biografias sociais, quer seja através da vida em comunidade, quer seja através de conflitos ou até mesmo dos monumentos, que são os lugares de memória. Você vai tomando e problematizando essa memória como objeto da história. Ela não é mais alguma coisa que seja a própria História, ela é alguma coisa sobre a qual a História se debruça para poder estudar e para poder entender melhor.

Pergunta: Mas não há História sem memória...

Ana Maria: Não há História sem memória. E o fundamental é marcar essa diferença. Você tem um trabalho de rememoração, quando eu rememoro com os meus filhos a trajetória daquilo que gerou a nossa família. Então, isso é um trabalho de rememoração. Ele constrói identidade, cria significado e cria coesão de grupo. Quando a história toma a memória como objeto, ela cria um olhar distanciado. E faz a seguinte pergunta: por que é importante lembrar? E por que as sociedades históricas são lembradas? Em diferentes momentos da trajetória humana, os usos do passado são diferenciados. O papel da memória, por exemplo, para os gregos antigos, era muito mais importante que o papel da história científica. Porque, para os gregos, era muito mais importante a epopéia dos antepassados trazida pela poesia épica do que a história contada, que era muito mais alguma coisa ligada ao evento, ao acontecimento. À medida que as sociedades se tornam mais complexas do ponto de vista da própria organização das suas atividades sociais e os grupos também se tornam mais diversificados, você vai começar a ter disputas em torno da identidade. E a memória vai ter um papel fundamental, no sentido de criar essa identidade social e de estabelecer, às vezes dentro do próprio grupo, parâmetros para gerenciar os conflitos sociais. Não há história sem memória, mas as duas coisas não são sinônimos.

Salto: E no caso da escola, como você vê a cobrança para o aluno memorizar determinados conteúdos?

Ana Maria: No caso de ensino universitário, principalmente com o nível universitário um pouco mais alto, com um pouco mais de exigência, o que a gente cobra dos alunos é muito mais um posicionamento crítico em relação ao conhecimento que está sendo apresentado do que propriamente uma opção entre memorizar e decorar. O ato de rememorar é o ato de investir um certo sentimento em torno daquilo que você está aprendendo. As datas, elas não significam nada se elas não vêm embutidas de significados. Tem uma frase que eu gosto muito do Alfredo Bosi, em que ele diz que as datas são pontas de icebergs, ou seja, elas revelam estruturas aparentes de coisas muito maiores, de verdadeiras montanhas de significado. Então, se você assume que aquele conhecimento é o conhecimento desejado, ele é rememorado, ele faz parte do seu rol de lembranças, aquelas lembranças que valem a pena serem chamadas quando elas são demandadas.

Salto: Por que existem fatos que caem no esquecimento e outros que as pessoas têm uma capacidade maior de guardar, memorizar?

Ana Maria: Tem um pensador, no sentido mais amplo do intelectual francês, chamado Michel Polac, que discute a questão da memória. Ele fala de um trabalho coletivo de enquadramento de memória, uma espécie de formatação das memórias que devem ser lembradas. Da mesma forma que você define o que deve ser lembrado, que promove a coesão social, que cria identidade social, coisas que não podem ser lembradas, que devem ser esquecidas. Então, esse trabalho de enquadramento de memória é justamente o trabalho da valorização de datas cívicas, de valorização de determinados personagens da história, trabalhando mais com o discurso histórico propriamente dito. Mas do ponto de vista da memória espontânea, ou da memória individual, ela está ligada a situações de trauma, a situações aonde você simplesmente bloqueia situações que promovem desconforto. Não querendo fazer um paralelo automático, as sociedades históricas, elas também operam dessa forma. Os governos autoritários vão valorizar determinados padrões de lembrança que os glorifiquem. Então, você vai criando marcos de definição do discurso historiográfico e de discurso da memória social também, da memória nacional. Quer dizer, da memória social no seu modelo de memória nacional, que vai valorizar justamente esses “nós”, que vai criar o discurso dominante, de uma determinada época. E o ensino da História hoje vem discutindo bastante isso.

Salto: Qual a importância do registro da imprensa para a memória social e individual?

Ana Maria: É interessante, porque vou tentar discorrer sobre isso, com um caso, contando um caso. Eu venho trabalhando um tempo com fotografias como fonte de objeto da Historia e no meu doutorado, que eu defendi em 1990, eu passei boa parte do doutorado organizando as fotografias da minha família, da minha avó que era imigrante libanesa. A gente ia organizando as fotografias e ia fazendo entrevistas com ela. E o interessante é que, junto com as fotografias, ela guardava recortes de jornal, que são fatos históricos que ela considerava mais relevantes para entender a própria trajetória da família. Ela recuperava as fotos e, junto com as fotos, vinham esses fragmentos, esses retalhos cotidianos da imprensa, fundamentais para ela poder se inserir nessa coletividade maior. Então, eu acho que esse caso ilustra bem a forma como, de diferentes maneiras, com diferentes exigências, o sujeito individual, ele se relaciona com essa produção coletiva de memória também, porque a imprensa, eu acho que ela também exerce esse papel.

Salto: Qual é a relação imagem, memória e história?

Ana Maria: Para mim elas são entrelaçadas de modo a criar um discurso. Historicamente, quando você vai trabalhar com as mensagens sociais que se processam através do tempo, você trabalha por meio de vestígios. Então, a imagem é um vestígio, a fotografia, a imagem técnica, aquilo é um vestígio. A fotografia, o cinema, a própria televisão. E como é que você vai ter acesso a esse vestígio? E é um vestígio de quê? Ele é um vestígio de um discurso produzido por sujeitos, a partir de um investimento que também é um investimento de memória. Então, quando você recupera esse discurso, olhando e trabalhando como objeto da história, você está na verdade sistematizando e relacionando dois elementos fundamentais: que é a memória, como discurso, como objeto da história, e a imagem, como também imaginação, que alimenta essa memória. Então a relação entre esses três elementos, ela é fundamental para entender o passado e os usos que o presente faz do passado.

Um comentário:

Cris Prata disse...

Ótima entrevista! Acabei de ter aula com essa professora que aprendi a admirar!
Tomei a liberdade de colocar seu link no meu blog http://portaldehistoria.blogspot.com