sábado, 17 de janeiro de 2009

"Escravidão, um grande negócio" - Ricardo Prado


"Escravidão, um grande negócio"
por Ricardo Prado

Manolo Florentino O historiador Manolo Florentino mostra que a escravidão teve uma extraordinária aderência social e lucrou como nenhum outro negócio da época

O Brasil foi o último país do continente a abolir a escravidão, há 120 anos. Tamanha resistência dá o que pensar. E pesquisar também. Nas últimas décadas, diversos historiadores vêm estudando arquivos, testamentos, inventários e relações de entradas e saídas de navios para conhecerem mais sobre a longa convivência brasileira com o trabalho escravo.

Alguns esforços para compreender a dimensão econômica e social da escravidão são internacionais. Nosso entrevistado do mês, o historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz parte do mais ambicioso deles: o mapeamento das cerca de 37 mil viagens transoceânicas movidas pelo “negócio mais lucrativo da época moderna”, segundo suas próprias palavras. O trabalho gigantesco de pesquisa, que já mapeou 33 mil viagens, deve estar acessível a professores na internet, em língua portuguesa, a partir de 2009.

Nesta entrevista concedida a Ricardo Prado, o historiador fala sobre a extraordinária aceitação social do trabalho escravo, a taxa de mortalidade nas viagens (menores do que se supunha) e o mecanismo da alforria (mais usado do que se pensava). Estas são algumas das novas luzes lançadas sobre um passado incômodo de um país que, para crescer, apoiou-se “em costas negras”, nome do livro seminal que Florentino lançou há mais de dez anos. O livro encontra-se esgotado, mas seu autor permanece produzindo novidades.

Carta na Escola: O imaginário escolar relacionado ao tráfico de escravos está fortemente impregnado pela gravura Porão de um Navio Negreiro, de Rugendas. Ela é fiel às condições em que viajavam os escravos?
Manolo Florentino: Ela é bem fidedigna ao ressaltar a tragédia dessa travessia. Vinham, em média, 400 escravos em cada navio, em porões que não tinham mais que 1,5 metro de altura. Mas as pesquisas contemporâneas vêm matizando a questão da mortalidade, que é a principal questão ressaltada pela gravura. Ela variava fundamentalmente em razão da distância entre o ponto-de-venda na África e a região de recepção nas Américas. Pode variar entre 9% e 10%, nas travessias menores, indo até 15% ou 20%, se a distância for maior ou dependendo do século estudado. A mesma taxa de mortalidade atingia a tripulação desses navios também. Mas não compensava pôr em risco toda a escravaria que se comprava na África; então, aquela visão antiga, que falava em mortalidades que chegavam a 50% ou 60% da carga, não condiz com a própria lógica do negócio.

CE: Os comerciantes de escravos preferiam trazer homens adultos? Em qual proporção eles eram em relação às mulheres e crianças?
MF: O padrão geral, para todas as regiões que receberam escravos nas Américas, é de 70% de adultos, sendo os homens na proporção de dois para cada mulher. A África prendia suas mulheres, porque a mulher é a principal mão-de-obra da agricultura. Sendo assim, a quantidade maior de homens embarcados segue não apenas uma lógica da plantação que requer braços mais fortes, mas também a lógica do papel da mulher na economia africana. Agora, em momentos de crise da oferta, como quando os ingleses começam a pressionar pelo fim do tráfico, certas regiões africanas, como o Golfo da Guiné, oferecem mais mulheres. Essa compra de mulheres, e também de crianças (sobretudo meninas), tem a ver com uma aposta que a plantation faz de “agregar úteros”, já preocupada com o eventual fim do tráfico.

CE: A repressão ao tráfico piorou as condições das viagens?
MF: A partir de 1830 o tráfico para o Brasil está terminado oficialmente, mas perdura por mais 20 anos na condição de contrabando. Há relatos de religiosos que acompanharam esses navios apreendidos que mostram claramente a piora nas condições dos embarcados. Curiosamente, aumentou a mortalidade, mas, também, a lucratividade dos traficantes. No caso brasileiro, a rentabilidade líquida de uma empresa nessa área podia chegar a 19% ou 20% antes da proibição do tráfico. Quando ele foi proibido, a lucratividade aumentou para 25% a 30% por viagem. Isso é um dado importante, porque uma fazenda de café ou cana-de-açúcar, em um excelente ano, com boa safra, rendia de 10% a 15%, o que faz com que se chegue à seguinte conclusão: o tráfico negreiro era o negócio mercantil mais lucrativo de toda a época moderna.

CE: O empresário de escravos era bem-aceito na sociedade da época?
MF: Eles eram absolutamente bem-sucedidos e muitos participavam da nobiliarquia brasileira. Havia entre eles barões e comerciantes com ótimas relações com a família real. A casa que é dada a dom João VI em sua chegada ao Brasil, a Quinta da Boa Vista, onde atualmente é o Museu Nacional, pertencia a um traficante de escravos chamado Elias Antonio Lopes. A partir de 1830, no entanto, a condição de clandestinidade faz com que essa gente comece a ser estigmatizada.

CE: O movimento abolicionista no Brasil começa a ganhar força com a proibição do tráfico?
MF: As pesquisas tendem a demonstrar que o abolicionismo, apesar de tomar força a partir de 1860 e 1870, já mostra seus indícios desde os anos 30 do século XIX. O problema é que a escravidão, no âmbito da formação do Estado Nacional brasileiro, como dizia José Bonifácio, é um problema de Estado. Ele possivelmente tinha razão ao associar a permanência da escravidão à própria unidade nacional. Muito possivelmente, se no processo de independência se assumisse a abolição da escravidão, o Brasil se fracionaria, como ocorreu em outras partes da América. Isso ainda não está bem estudado, hoje, mas a escravidão é um elemento de coesão nacional, na medida em que havia uma aderência social muito grande, não só dos grandes proprietários de escravos, mas também da população em geral. Era aquilo que Joaquim Nabuco falava, em uma frase que não soa muito adequada aos ouvidos contemporâneos: ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, a escravidão brasileira seria “democrática”, porque mesmo os homens mais pobres tinham acesso a ela.

CE: Os escravos urbanos eram mais alforriados do que os que viviam na zona rural?
MF: Sim, e isso é fácil de entender a partir dos tipos de alforria que havia. Eram de três tipos: a gratuita, a que envolvia uma troca da liberdade por serviços, que era pactuada entre o senhor e seu escravo, e a que era paga em dinheiro. Assim, na cidade, aqueles que eram escravos “ao ganho” tinham a possibilidade de trabalhar para seus senhores, mas, também, de acumular um pecúlio. Em razão dessa maior capacidade de acumular dinheiro nas cidades, as alforrias urbanas eram em número muito maior do que as rurais.

CE: Como um escravo conseguia ganhar dinheiro?
MF: Se ele era um escravo “ao ganho”, ele o era dentro de sua profissão. O sujeito era alfaiate “ao ganho”, quitandeira “ao ganho”, carregador “ao ganho”. Eles eram obrigados a dar uma certa quantia, diária, semanal ou mensal, ao seu senhor. O tempo que sobrava ele podia usar para prestar serviços na cidade e, assim, acumular dinheiro.

CE: Ao andar na rua, como esse homem alforriado conseguia provar que não era mais escravo?
MF: Debret mostra claramente isso: eles andavam com uma espécie de cilindro amarrado ao pescoço. Dentro desse cilindro, levavam a carta de alforria. Mas muitas vezes um deles podia ser capturado, desapareciam com o documento e ele caía novamente na escravidão. Machado de Assis descreve casos de escravos que eram seqüestrados, voltando à condição anterior.

CE: E como se dava essa negociação?
MF: Havia uma tradição que parece ter tido vigência no Brasil até os anos 1830 que defendia a possibilidade de o escravo comprar sua liberdade se conseguisse acumular a mesma quantia paga pelo seu senhor por ele. Essa era uma norma consuetudinária, ou seja, amparada unicamente na tradição, e que seria rompida a partir da proibição do tráfico, pois o preço da mercadoria escrava subiu muito. Com isso, passou a ser desvantajosa para muitos senhores de escravos, mesmo aqueles mais obedientes à tradição, a alforria nestas condições. Para se ter uma idéia, em fins do século XVIII um escravo adulto, do sexo masculino, custava o equivalente ao preço de dois cavalos. Em 1850, esse escravo equivaleria a 20 ou até 30 cavalos. O abandono dessa tradição estaria na origem de algumas das principais revoltas de escravos ocorridas no Brasil, como a dos Malês, em 1835, na Bahia.

CE: O medo de uma revolta de escravos era mais presente no campo ou nas cidades?
MF: Era mais presente nas cidades. Depois de 1808, com a chegada da família real, e até 1850, calcula-se que tenham entrado cerca de 2 milhões de escravos no Brasil, e o total de africanos enviados ao País é estimado em 5 milhões. Em 1830, no Rio de Janeiro, a população de escravos era maior do que a livre. Isso traz consigo o temor de revoltas, sobretudo depois da Revolução Haitiana de 1791, quando os escravos expulsaram os colonizadores da ilha e tomaram o poder. Há um fenômeno que se alastra por toda a América, o chamado “haitianismo”, que é o temor das elites de que seus escravos se sublevassem também.

CE: Os responsáveis pelo controle dos escravos eram homens brancos ou escravos?
MF: No caso do Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, esses prepostos dos patrões eram escravos.

CE: Não era arriscado ter um capataz escravo?
MF: O problema é que se tem uma visão um tanto limitada da escravidão. A palavra “escravo” não dá conta da complexidade que existe no interior da própria escravaria. Hoje em dia nós sabemos que a população escrava era extremamente hierarquizada. Havia aqueles que eram mais próximos da vida de seus senhores, e que tinham, em razão disso, benesses que o escravo do eito, da labuta, não contava. Gilberto Freyre chega a chamar os escravos domésticos de “aristocracia escrava”. Claro que é um termo paisagístico, nada analítico, mas significa que, quanto mais próximo esse escravo estava da família da “Casa-Grande” e do catolicismo, mais privilégios ou menos humilhações e castigos ele teria. Geralmente era desse topo da hierarquia que saíam os capatazes.

CE: E o que se sabe atualmente sobre o modo de funcionamento dos quilombos?
MF: A maior parte deles eram comunidades muito pequenas, de 10 a 15 pessoas. Pouquíssimos chegaram a ter uma população de mil ou duas mil pessoas. No caso do Quilombo dos Palmares, estima-se que chegou a abrigar de 11 mil a 15 mil pessoas, inclusive brancos livres e indígenas.

CE: Era um tamanho de cidade razoável para a época, não?
MF: Não chegava a ser uma cidade, era uma região na Serra da Barriga, em Alagoas, com várias comunidades disseminadas. E que demorou um século para ser destruída, resistindo tanto aos holandeses quanto aos portugueses.

CE: Os quilombos mantinham relações comerciais com as cidades vizinhas?
MF: Era praticamente uma precondição para a sua existência. Essa idéia de que o quilombo fosse uma espécie de reprodução da África no Brasil é equivocada. A segunda idéia que hoje em dia está superada é a do quilombo como uma espécie de enclave. A manutenção de relações mercantis com seu entorno e com a própria sociedade escravista era essencial para a sobrevivência dos quilombos. É nesse comércio que os quilombolas obtêm suas armas e extraem informações sobre sua segurança.

CE: O que se sabe sobre Zumbi?
MF: Alguns questionam a própria existência de Zumbi dos Palmares. Mas parece que ele existiu de fato. Sua importância vem do esforço do Movimento Negro no Brasil em busca de uma identificação e da criação de heróis. O ensino da escravidão padece desse problema sério: é muito difícil uma criança se identificar com alguém que apanha e está sempre famélico e sujo. A identidade do negro hoje também se faz a partir da ressignificação do homem negro no tempo. Nesse sentido, Zumbi é mais uma construção historiográfica, já que se conhece muito pouco sobre ele.

CE: Como era a família do escravo?
MF: Esse é um tema fabuloso. Até pouco tempo atrás se negava a existência da família do escravo, a não ser como um fenômeno secundário. Pesquisas feitas, principalmente nos anos 1990, mostram que não apenas existe a família do escravo, como ela é um elemento estrutural da própria escravidão, pois dá estabilidade ao sistema. O escravo que tem família se revolta pouco, não foge. Hoje nós sabemos que cerca de um terço dos escravos brasileiros se encontrava unido por relações de primeiro grau, ou seja, pai, mãe, filho, esposo e esposa. Mais do que isso: 70% desses escravos permaneciam juntos no ato da partilha que acontecia depois da morte do senhor. Essas famílias podiam ser separadas, mas grande parte dela era mantida.

CE: A escravidão no Brasil foi diferente da ocorrida em outros países americanos?
MF: A primeira grande diferença é que o Brasil tem a maior freqüência de alforrias entre todos os outros países americanos. Segunda grande diferença: o peso demográfico da escravidão urbana no Brasil não tem equivalente nem no Caribe nem no Sul dos Estados Unidos, onde os escravos eram, em sua grande maioria, trabalhadores do campo.

CE: Por que a Inglaterra se empenha tanto pelo fim da escravidão? São interesses econômicos?
MF: Não, essa explicação econômica já não se sustenta hoje. A interpretação mais aceita é que houve um movimento de opinião pública embasado muitas vezes por religiosos, que passam a não mais tolerar a escravidão. É um movimento no âmbito da cultura. Mas, curiosamente, e dramaticamente, o que ainda se ensina nos livros didáticos são razões econômicas onde só havia razões de ordem cultural e política.

CE: Há algum bom filme brasileiro sobre a escravidão?
MF: Lamentavelmente, a produção cinematográfica brasileira sobre a escravidão, além de minguada, em grande parte dos casos trata o negro de maneira folclórica. Eu destaco um filme sobre a escravidão que, para mim, é o melhor já feito, mas, curiosamente, trata da escravidão indígena. É Desmundo, um extraordinário documento visual pela acuidade na reconstituição da época.

CE: Ler Gilberto Freyre ajuda a entender como se deu a escravidão?
MF: Ele é um dos clássicos mais censurados do País, por ter sido um homem politicamente conservador. Mas Casa-Grande & Senzala é um livro que se confunde com o próprio imaginário popular sobre a escravidão. E no livro não há nada daquela idéia de uma escravidão benevolente, “boazinha”. Aliás, não existe menção à “democracia racial”, uma expressão que foi cunhada por Roger Bastide para comentar o trabalho de Freyre. Na minha opinião, Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mocambos são dois livros imprescindíveis. Lê-los é um prazer; entender o Brasil a partir deles, é melhor ainda.

CE: E na internet, o que há sobre a escravidão?
MF: Eu destacaria um site, fundamental, chamado Slavery Images, dos professores Jerome Handler e Michael Tuite Jr., da Universidade da Virgínia. É a mais completa coleção de imagens da escravidão no mundo inteiro.

CE: Qual sua opinião em relação à lei que obriga o ensino da cultura e da história afro-brasileira nas escolas?
MF: O grande mérito dele é criar a necessidade de formarmos professores com esse tipo de conhecimento. Hoje boa parte das graduações ensina a história da África, que antes não acontecia. Aos poucos, isso chegará às escolas também.
Revista Carta Escola

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