segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Francisco Carlos Teixeira da Silva - Particípio do presente


01/03/2008

Francisco Carlos Teixeira da Silva
Particípio do presente

Brinco na orelha, tatuagens pelo corpo, presença constante na TV. Nem parece, mas Francisco Carlos Teixeira da Silva é um historiador. Só que não um daqueles à moda antiga. Seu principal tema de interesse são os assuntos contemporâneos, ou, como anuncia a placa na porta de seu laboratório, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Tempo Presente.

Especialista na História Social do Brasil, com doutorado e pós-doutorado na Alemanha, dedica-se, com gosto especial, a desconstruir mitos do nosso passado recente. Inclusive aqueles que envolvem sua própria atuação histórica.

Ex-militante comunista, hoje trabalha junto ao Exército, levando o debate histórico para escolas militares. E retira das Forças Armadas a responsabilidade exclusiva pelo golpe de 64. Por outro lado, não entende a resistência de alguns oficiais ao julgamento de torturadores. “Não se deve culpar as instituições, mas os indivíduos. A tortura foi feita por pessoas de carne e osso”. Representante da geração 68, minimiza a interpretação “narcísica” de que aquele período foi decisivo para as transformações do país. “Devemos olhar um pouco mais para trás. O Brasil moderno começou em 1958, 1959”. Como historiador, assume que escolas de samba e programas televisivos são mais influentes para o conhecimento popular que qualquer tese de doutorado. E, com uma vida dedicada à academia, declara, sem rodeios, que a universidade não contribuiu para sua formação.

Este é Francisco Carlos Teixeira da Silva. Mas pode chamar de Chico.

Revista de História – Como foi sua passagem pela universidade pública durante o regime militar?
Francisco Carlos – A universidade não foi importante na minha vida. É verdade que tive alguns professores bons, mas poucos. A instituição que fez diferença na minha formação foi o Colégio Pedro II.

RH – Por quê?
FC – Era um colégio muito criativo. Eu fiz o chamado Curso Clássico de Humanidades, que preparava para a Faculdade de Filosofia e Letras. Tínhamos aulas de latim, grego, literatura, história, geografia e duas línguas vivas que, no meu caso, eram o francês e o alemão. Líamos de Homero até Brecht. O diretor, Vandick Londres da Nóbrega, embora fosse um interventor e homem de confiança dos militares, valorizava quem era sério e competente. Inclusive testemunhou a favor do filósofo Vieira Pinto, no processo que pretendia cassá-lo. No Pedro II a gente tinha até um grupo de teatro bastante avançado para a época.

RH – Você atuava?
FC – Atuava. Acho que é por isso que eu gosto de dar aula e faço isso razoavelmente bem. Teatro, naquele momento, tinha muito de grupo de estudo. Você tinha que fazer laboratório, estudar literatura, conhecer os autores. O ambiente do Pedro II foi muito mais rico do que o que encontrei na universidade.

RH – Na UFRJ a repressão era pesada?
FC – O diretor do IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Humanas], Eremildo Viana, fazia listas para cassar professores. Mais de três alunos não podiam se reunir no corredor. Isso era considerado reunião política e tinha punição. Havia professores com formação policial, ligados ao MAC [Movimento Anti-Comunista] e ao CCC [Comando de Caça aos Comunistas].

RH – Você estava envolvido com política?
FC – Eu pertencia à TB, Tendência Bolchevique da IV Internacional Comunista. Este era, na verdade, o nome da Internacional Trotskista. Uma característica do trotskismo é estudar, agir pouco e brigar muito. Brigar entre si, quero dizer. Se houvesse três trotskistas juntos haveria com certeza uma cisão e a formação de uma nova tendência de oposição. De todo modo o trotskismo tinha esse caráter de estudo, de trabalho. Fiquei na TB até o momento em ela tentou construir um partido de massas no Brasil, já no começo da abertura política, que foi a Convergência Socialista. Como bom trotskista, eu me retirei, pois não concordava com a plataforma da Convergência.

RH – A opção pela História teve a ver com seu engajamento político?
FC – Ah, com certeza. Nós pensávamos que estudando História, História Contemporânea especialmente, e também um pouco Ciência Política, iríamos entender mais o país e poder atuar politicamente. A visão do curso naquela época era muito instrumental, politizada. Você queria fazer História porque tinha responsabilidade, envolvimento político, esse era o elemento central. Mas quando se chegava na universidade era uma grande decepção. O curso de História acabava em 1930. Nunca tive nenhuma aula que tratasse do que aconteceu depois! Não estudei a Revolução Russa, o fascismo ou qualquer coisa relacionada com História Contemporânea na universidade...

RH – Isso mudou?
FC – Aconteceu uma coisa interessante: hoje os alunos têm um imenso interesse por História Antiga e Medieval. É muito gozado, porque no meu tempo, se você se interessasse por essas matérias ganhava a fama de “reacionário”. E aqui na UFRJ essa área era dirigida pelo Eremildo Viana. Então você teria que trabalhar com uma pessoa detestável do ponto de vista ético, político e também como ser humano.

RH – Como foi a briga que o jornalista Elio Gaspari teve com ele?
FC – Não houve agressão física. O fato é que Gaspari o enfrentou duramente e ele não bobeou. Aplicou o decreto 477, que permitia que qualquer aluno fosse expulso por atividade política. Gaspari foi trabalhar em jornal, no que fez muito bem, senão seria hoje um professor universitário. Mas manteve a tradição acadêmica de pesquisa, de escrita, e nunca esqueceu do Eremildo...

RH – Criou até um personagem inspirado nele...
FC – Eremildo, o Idiota. O Gaspari é um cara mau nesse sentido. Naquele tempo ele fazia coisa pior. As revistas publicavam inúmeros encartes anunciando enciclopédias, cursos pelo rádio, essas coisas. Você destacava e mandava. O Gaspari ficava colecionando esses anúncios em consultórios médicos, ou então pedia aos amigos. Preenchia com o nome e o endereço do Eremildo e colocava no correio. O número de enciclopédias que o Eremildo comprou por esse sistema deve ter sido imenso por causa dessa maldade do Gaspari...

RH – Que fim levou o Eremildo, depois da ditadura?
FC – Foi uma história triste. Ele morreu doente, sozinho, num hospital, com problemas financeiros gravíssimos. Não tinha nem roupa para ser enterrado. Telefonaram para cá e demos ordem de comprar um terno para vesti-lo. Parece teatro grego, foi um fim dos mais trágicos e solitários para uma figura que havia sido tão poderosa.

RH – Qual o legado mais importante da sua geração, que enfrentou os chamados “anos de chumbo”?
FC – Se há um legado, não é só nosso. Na verdade, a geração anterior, dos nossos professores, teve uma atuação política muito importante. Um dos que lecionou no IFCS foi Victor Nunes Leal, autor de Enxada e voto, livro fundador da teoria política no Brasil. Não se pode discutir voto, qualidade de voto, sem passar pelas teses dele.

RH – A importância da sua geração é, então, superestimada?
FC – O fato de termos vivido 1968 com tanta intensidade pode nos levar a uma reação – para usar um termo lacaniano – narcísica da História. Fazemos o nosso próprio elogio quando, na verdade, a geração que nos antecedeu era extremamente produtiva. Em vez de dar tanta importância a 1964 ou a 1968, deveríamos olhar um pouquinho mais para trás, pensar no período que vai do suicídio de Vargas à construção de Brasília. É quando as coisas realmente aconteceram. O que implica em uma discussão para mim muito importante: onde começa o tempo presente brasileiro?

RH – Pode explicar esse conceito de Tempo Presente?
FC – Ele surgiu na França, principalmente por intermédio de uma historiadora chamada Lucy Valansi, especializada em judeus na Idade Média. Ela acusou a revista dos Annales de, até 1992, ter publicado milhares de artigos sobre bruxas, feitiçaria, sobre todos os heréticos possíveis, e de não ter publicado um artigo sequer sobre o Holocausto, a perseguição aos judeus na França e a colaboração de Vichy com os nazistas. E o tempo presente para a França passou a ser esse embate com o passado da ocupação. Em Berlom, foi criado recentemente um Instituto de História Comparada dedicado ao tempo Presente. E tembém o Centro de Pesquisas do Anti-Semintismo, do qual sou membro. Para eles é o que chama “a catástrofe”. É aquela velha história: “Nunca pergunte ao seu pai o que ele fazia durante a guerra; você pode não gostar da resposta”. Quando eu cheguei à Alemanha, em 1982, na universidade tinha um grafite no banheiro que apresentava uma questão de múltipla escolha assim: “Escolha seu nazista predileto: a)Adolf Hitler, b) Goebbels, c) Göring d) Meu avô”.

RH – Então, quando começa o tempo presente brasileiro?
FC – Acredito que 1958 e 1959 foram os anos da virada. A cisão real do Brasil moderno. Antes disso, enquanto sociedade civil organizada, não tínhamos nada. A coisa mais próxima do que se poderia chamar de instituição da sociedade civil eram os sindicatos. No entanto, o sistema de dependência que mantinham com o Estado anulava sua capacidade de agir autonomamente em defesa de uma ordem social. Era uma sociedade de Ancien Regime, e não uma sociedade industrial moderna. Temos que pensar em um continuum, que tem em 58 e 59 seu ponto de culminância. É o momento em que saímos de um país provinciano para ingressarmos em outro país.

RH – O que aconteceu de mais importante nesse período?
FC – Primeiramente aquilo que se chamava de “crítica da realidade brasileira”. Foi um esforço muito ingênuo, mas ao mesmo tempo muito presunçoso, que permitiu a eclosão da modernidade brasileira. Pela primeira vez, a população urbana supera a rural. Na área cultural as mudanças são flagrantes. Temos Brasília, a Bossa Nova deixa para trás aquela música abolerada que era típica do momento, surgem os parangolés do Hélio Oiticica, temos Ligia Clark, Ligia Pape, Ferreira Gullar, Glauber Rocha.

RH – Como explicar, nesse contexto, o golpe de 64?
FC – O que faltou foi uma sociedade organizada que pudesse não exatamente resistir, mas pelo menos oferecer a possibilidade de resistência. Os golpistas, então, iriam ter de pensar duas vezes se iriam ou não participar de uma aventura desse tipo. Hoje eu acho que sociedade civil desejou o golpe, no mesmo sentido que a sociedade alemã desejou o nazismo. Ela, intrinsecamente, queria o golpe. É só a gente apanhar as páginas de O Globo dos dias 2, 3 e 4 de abril, e ver as manifestações de massa e as comemorações pelo golpe. Um golpe organizado por três governadores, de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, e várias entidades – a Igreja, a mídia, todo mundo junto.

RH – Como anda a sociedade organizada hoje?
FC – De um tempo para cá, comecei a ter sérias dúvidas sobre a autonomia da chamada sociedade civil. As ONGs, por exemplo, são clientes do Estado. Sem repasse de verbas ou coisa parecida não têm poder algum. A construção autônoma dessas entidades é ainda muito frágil no Brasil. Elas não conseguem viver sem um Estado ao lado, fomentando e apoiando.

RH – O MST vive a mesma situação?
FC – Não, o MST é uma experiência verdadeiramente autônoma, inclusive com uma postura instrumental sobre os partidos políticos. Mas é um exemplo raro no Brasil de hoje.

RH – Fale um pouco sobre o projeto Pró-Defesa.
FC – A idéia do Pró-Defesa é simples. Temos uma turma de mestrado e outra de doutorado em que o tema tem de se relacionar com assuntos militares. E fazemos inserções nas diversas escolas militares. Para mim, tem sido fantástico falar sobre História do Brasil para 500 jovens alunos e aspirantes de 16 a 18 anos. Daqui a duas semanas viajo para as Agulhas Negras. Vou passar sábado e domingo com a garotada de lá, dando aula de estratégia. Acho fundamental que você trabalhar grandes temas com esses jovens, como o Holocausto e as ditaduras do século XX.

RH – É uma espécie de intercâmbio entre instituições civis e militares?
FC – Acho que é mais do que isso. Durante muito tempo, as Forças Armadas foram nossos oponentes, não é? O que era até injusto, no sentido de que o golpe de 64 não foi exclusivamente de autoria dos militares. Há algumas acusações até revoltantes contra eles. O grupo de repressão de São Paulo, a chamada operação OBAN, nunca pertenceu às Forças Armadas, como muita gente diz. Sabe-se que esses sistemas mais duros de repressão foram financiados por empresários. Mas como os militares tinham mais visibilidade, acabaram injustamente com um ônus maior. Agora, passado esse período, precisamos ver as Forças Armadas como instituições que pertencem à sociedade brasileira. É isso que inspira o projeto Pró-Defesa.

RH – É o que pensam os seus colegas?
FC – Não, alguns continuam em luta contra as Forças Armadas. Eu, ao contrário, acho que não se deve culpar as instituições. A tortura foi feita por pessoas de carne e osso. Ao culpar uma instituição, você acaba absolvendo essas pessoas. Em todas as instituições, inclusive as Forças Armadas, havia a opção de não torturar. O cara sempre poderia dizer: “Me transfere para outro lugar”. Se não disse, assumiu a responsabilidade, e aí não há como perdoar. Não sei por que razão alguns oficiais ainda se sentem ofendidos quando se fala em punir torturadores. Não se quer punir as Forças Armadas, mas aquele indivíduo que, inclusive, traiu as Forças Armadas, torturando, seqüestrando e matando.

RH – O Exército de hoje é diferente do Exército de 64?
FC – Sem dúvida. Houve renovação. Não existe mais ninguém, na instituição, que tenha tido qualquer cargo importante durante a ditadura. Os oficiais de hoje eram cadetes naquela época. Para você ter uma idéia, apesar do meu perfil, recebi as medalhas Tamandaré e do Pacificador, as duas comendas mais importantes da Marinha e do Exército, respectivamente. Me orgulho muito disso. Nem precisei tirar o brinco durante a cerimônia. Quer dizer, não fui eu quem mudou, mas o critério de escolha deles.

RH – Você participa também de um grupo que estuda a questão do terrorismo. Qual é a finalidade desse trabalho?
FC – A finalidade é definir o que é terrorismo no Brasil, com vistas a uma legislação específica. Fui conselheiro de um projeto nesse sentido, feito pela ABIN [Agência Brasileira de Inteligência]. Na verdade, é a ONU que está discutindo isso. O Brasil, como signatário da Assembléia da ONU, deve incorporar a matéria, como é de praxe, à nossa legislação ordinária.

RH – Qual é a sua posição?
FC – Sou contra, pois a punição por atos terroristas já está prevista no Código Penal. Transportar uma bomba para explodir um avião, por exemplo, é crime, não precisa de nenhuma lei específica. O problema é que o Brasil vive fazendo leis especiais e não cumpre nenhuma delas. Meu medo é que venhamos a criminalizar o movimento social autônomo como terrorismo. Outra dificuldade é definir se atos praticados pelo crime organizado – como a matança de policiais em São Paulo ou incêndio de ônibus no Rio de Janeiro – podem ser classificados como terrorismo.

RH – Como ficou o projeto?
FC – Infelizmente, fui voto vencido e o projeto foi enviado à ministra Dilma Rousseff. Mas ela teve o bom senso de devolvê-lo e, por enquanto, não se estabeleceu o crime de terrorismo no Brasil. O Brasil é um país interessante. O primeiro seqüestro de diplomata foi aqui. O primeiro seqüestro de avião também. Mas isso é coisa do passado. Pessoalmente, não acredito que exista no Brasil um terrorismo próprio, autóctone.

RH – Aumentou o interesse pela História Contemporânea?
FC – Não só pela História Contemporânea, mas pela História em geral. A sociedade, hoje, está com fome de História. Essa coisa que acontece comigo e com outros historiadores, de ser chamado a toda hora à TV para comentar alguma coisa, é sinal de que a sociedade nos legitima como pessoas que podem falar em nome da memória coletiva.

RH – Isso é bom para o historiador?
FC – É muito bem-vindo. Isso não era imaginável há pouco tempo atrás, quando as profissões de prestígio eram médico e advogado. Hoje o historiador, e também o cientista político e o antropólogo, têm uma respeitabilidade muito grande. Mas não podemos querer ser, evidentemente, os donos exclusivos dessa memória.

RH – Quem seriam os outros?
FC – Há muitos donos. Uma minissérie da TV, “Amazônia”, por exemplo, constrói História. Nos barracões das escolas de samba se faz isso o tempo todo. Tudo que os brasileiros sabem sobre Chica da Silva, Dom Pedro e outros personagens, vem muito mais daí que de alguma tese produzida na universidade. Nós, historiadores, talvez sejamos os menos populares, os que têm menos acesso à opinião pública nesse sentido. Não me acho no direito, por exemplo, de assistir a um filme e depois dizer: “Está errado, não foi assim que aconteceu”. A liberdade de criação tem de ser completa. Acho muito interessantes todas as visões da História do Brasil, seja a de uma Carlota Joaquina carnavalizada, seja a de um torturador com dúvidas, como aparece no filme “O que é isso, companheiro?” Eu não sei se torturadores têm dúvidas, mas o diretor quis colocar, e considero isso legítimo.

RH – O que acha das críticas que se fazem aos historiadores que se debruçam sobre temas considerados recentes demais?
FC – Já me falaram, como se fosse uma grande ofensa, que o que faço é jornalismo, e não história. Essas críticas surgem justamente porque não existe um debate sobre o que seja o Tempo Presente no Brasil. Muitas das críticas eu aceito tranqüilamente. Acho até que não é bom alguém começar a estudar, de imediato, temas contemporâneos. Todo mundo devia começar fazendo pesquisa sobre história em grande profundidade. Seria legal que o cara fizesse seu mestrado sobre o século XVI, XVII ou XVIII, aprendesse as técnicas do campo, para depois tratar de História Contemporânea.

RH – Aqui entre nós: um historiador do Tempo Presente não sofre com a tentação de prever o futuro?
FC – Sofre. Sofre o tempo todo e é demandado a isso o tempo todo. Acontece que nós somos péssimos para prever o futuro, é dificílimo acertar alguma coisa. Mas ninguém é pior para prever futuro que cientista político e economista. Só que eles não assumem que erram.

Revista de História da Biblioteca Nacional

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