LUIZ SUGIMOTO
Digam o que quiserem, mas o cinema da Boca do Lixo sonhou tornar-se uma Hollywood. Instalada na rua do Triunfo, área deteriorada do centro de São Paulo, esta indústria respondeu por 40% da produção de filmes nacionais nos anos 1970, quando o mercado absorveu a média de 90 títulos por ano. Um retrato detalhado e sem sombra de preconceito desta comunidade peculiar de diretores, atores, atrizes, técnicos, produtores e distribuidores, está no livro Boca do Lixo – Cinema e classes populares, do professor e cineasta Nuno Cesar Abreu, lançado pela Editora da Unicamp.
Obra retrata comunidade que pretendeu formar nossa Hollywood
“É uma comunidade que criou identidade própria, por meio de relações econômicas, artísticas e pessoais que permitiram aliar produção, distribuição e exibição. Qualidade da produção à parte, podemos dizer que foi um período de ouro para o cinema brasileiro – e de um cinema popular, se entendermos que ele era realizado e visto por pessoas dos mesmos estratos sociais. Minha impressão é de que a Boca aspirava por reconhecimento”, afirma o autor.
Segundo Nuno Abreu, o surgimento e o florescimento do cinema da Boca do Lixo não podem ser desvinculados do contexto dos anos 70, de pleno regime militar. Havia uma política de substituição das exportações, através de leis protecionistas de incentivo à ocupação do mercado pelo “similar nacional”, que começava na indústria e se estendia às atividades artísticas. No cinema, uma lei de 1968 obrigava que 50% dos filmes exibidos fossem brasileiros, sob pena de fechamento das salas.
“O cinema da Boca emerge no fermento desta obrigatoriedade. É nitidamente um caso em que a legislação gera a produção. Se havia dias determinados para exibição de filmes nacionais, então os próprios exibidores e distribuidores decidiram ajudar a produzi-los. E, como se fazia filmes com 20 ou 30 mil dólares, muitos comerciantes, fãs dos gêneros, também compravam suas cotas, com retorno garantido. ‘Pequenas empresas, grandes negócios’, seria o slogan”, compara Abreu.
Apesar de sua identificação com a pornochanchada, a Boca do Lixo produziu gêneros variados: faroestes inspirados no spaghetti italiano, policiais, melodramas e aventuras de segunda linha, cangaço e mesmo kung fu. A rejeição das elites, contudo, era patente. O professor observa que, no ambiente dos 70, ainda ecoava a efervescente contracultura dos anos 60 – o cinema novo, o tropicalismo e, na esfera dos costumes, a revolução sexual e a liberação da mulher.
Enquanto durou, a comunidade da rua do Triunfo não despertou qualquer interesse acadêmico, além de ser transformada em saco de pancadas da crítica. Nuno Abreu questiona, porém, se a rejeição não era devida, em parte, à apropriação da temática da sexualidade pelas classes populares. “O sexo estava na cabeça de todo mundo. Se a classe média recorreu aos divãs, as outras eram igualmente reprimidas e não escaparam da febre. Os filmes da Boca faziam sucesso junto às classes inferiores e talvez o erotismo como cultura de massa é que incomodasse”.
Censura – Outra pecha atribuída ao cinema da Boca é de ter progredido graças à repressão no regime militar. A ex-musa Matilde Mastrangi, por exemplo, declara no livro que a pornochanchada não predominaria se os representantes do chamado cinema culto encontrassem espaço para atuar no país. “Acho a explicação simplista. Os militares certamente prefeririam produções de caráter patriótico ou de outra natureza. Obviamente faltaram filmes tratando do papel histórico das classes populares, mas estas também precisavam de um canal para aliviar a repressão da sexualidade”.
A censura, ao contrário, mutilava os filmes eróticos mediante critérios incompreensíveis – permitia a mostra de um seio, mas não de ambos; se um mesmo palavrão aparecia três vezes, exigia o corte de duas falas. É verdade, de acordo com Abreu, que os métodos da censura também serviam para promover o filme. O diretor e ator David Cardoso incluía tarjas pretas nos cartazes, sugerindo o encobrimento de cenas mais fortes. “A pornochanchada vendia o que não tinha para entregar, recorrendo a títulos insinuantes para isso. Um fato é que finalmente tirou-se a roupa com certa naturalidade nas telas. Mas os ângulos por baixo da saia, por dentro do decote, são próprios para um voyeur adolescente, com toda a carga de ingenuidade que isso traz”, diz o professor.
Explícitos – A pornochanchada, portanto, sempre esteve bem distante dos filmes de sexo explícito. Houve um período de transição, já nos anos 80, em que se inseriram cenas explícitas com “dublês”, mas estrelas como Helena Ramos, Matilde Mastrangi e Aldine Muller recusaram-se a participar de tais produções. Foram os filmes pornográficos, aliás, que decretaram o fim do cinema da Boca do Lixo, embora o modelo já se mostrasse desgastado.
“Os mandados de segurança liberando Império dos sentidos – considerado um filme de arte – e Calígula abriram a porteira para a invasão de pornôs”, recorda Abreu. Como a implantação das salas especiais para este gênero nunca se efetivou no Brasil, os explícitos foram desalojando a pornochanchada das grandes salas do centro da cidade. Estas, por sua vez, acabaram estigmatizadas e transformadas em templos, estacionamentos e supermercados.
Organizado na forma de documentário, o livro de Nuno Cesar Abreu entremeia dados de pesquisa, depoimentos e artigos, além de comentários do autor. Traz 16 entrevistas com remanescentes do star system da Boca do Lixo: Alfredo Sternheim, Aníbal Massaini, Carlos Reichenbach, Cláudio Cunha, Claudio Portioli, David Cardoso, Guilherme de Almeida Prado, Helena Ramos, Inácio Araújo, Jean-Claude Bernadet, Luiz Castillini, Mario Vaz Filho, Matilde Mastrangi, Ozualdo Candeias, Patrícia Scalvi e Sylvio Renoldi.
Digam o que quiserem, mas o cinema da Boca do Lixo sonhou tornar-se uma Hollywood. Instalada na rua do Triunfo, área deteriorada do centro de São Paulo, esta indústria respondeu por 40% da produção de filmes nacionais nos anos 1970, quando o mercado absorveu a média de 90 títulos por ano. Um retrato detalhado e sem sombra de preconceito desta comunidade peculiar de diretores, atores, atrizes, técnicos, produtores e distribuidores, está no livro Boca do Lixo – Cinema e classes populares, do professor e cineasta Nuno Cesar Abreu, lançado pela Editora da Unicamp.
Obra retrata comunidade que pretendeu formar nossa Hollywood
“É uma comunidade que criou identidade própria, por meio de relações econômicas, artísticas e pessoais que permitiram aliar produção, distribuição e exibição. Qualidade da produção à parte, podemos dizer que foi um período de ouro para o cinema brasileiro – e de um cinema popular, se entendermos que ele era realizado e visto por pessoas dos mesmos estratos sociais. Minha impressão é de que a Boca aspirava por reconhecimento”, afirma o autor.
Segundo Nuno Abreu, o surgimento e o florescimento do cinema da Boca do Lixo não podem ser desvinculados do contexto dos anos 70, de pleno regime militar. Havia uma política de substituição das exportações, através de leis protecionistas de incentivo à ocupação do mercado pelo “similar nacional”, que começava na indústria e se estendia às atividades artísticas. No cinema, uma lei de 1968 obrigava que 50% dos filmes exibidos fossem brasileiros, sob pena de fechamento das salas.
“O cinema da Boca emerge no fermento desta obrigatoriedade. É nitidamente um caso em que a legislação gera a produção. Se havia dias determinados para exibição de filmes nacionais, então os próprios exibidores e distribuidores decidiram ajudar a produzi-los. E, como se fazia filmes com 20 ou 30 mil dólares, muitos comerciantes, fãs dos gêneros, também compravam suas cotas, com retorno garantido. ‘Pequenas empresas, grandes negócios’, seria o slogan”, compara Abreu.
Apesar de sua identificação com a pornochanchada, a Boca do Lixo produziu gêneros variados: faroestes inspirados no spaghetti italiano, policiais, melodramas e aventuras de segunda linha, cangaço e mesmo kung fu. A rejeição das elites, contudo, era patente. O professor observa que, no ambiente dos 70, ainda ecoava a efervescente contracultura dos anos 60 – o cinema novo, o tropicalismo e, na esfera dos costumes, a revolução sexual e a liberação da mulher.
Enquanto durou, a comunidade da rua do Triunfo não despertou qualquer interesse acadêmico, além de ser transformada em saco de pancadas da crítica. Nuno Abreu questiona, porém, se a rejeição não era devida, em parte, à apropriação da temática da sexualidade pelas classes populares. “O sexo estava na cabeça de todo mundo. Se a classe média recorreu aos divãs, as outras eram igualmente reprimidas e não escaparam da febre. Os filmes da Boca faziam sucesso junto às classes inferiores e talvez o erotismo como cultura de massa é que incomodasse”.
Censura – Outra pecha atribuída ao cinema da Boca é de ter progredido graças à repressão no regime militar. A ex-musa Matilde Mastrangi, por exemplo, declara no livro que a pornochanchada não predominaria se os representantes do chamado cinema culto encontrassem espaço para atuar no país. “Acho a explicação simplista. Os militares certamente prefeririam produções de caráter patriótico ou de outra natureza. Obviamente faltaram filmes tratando do papel histórico das classes populares, mas estas também precisavam de um canal para aliviar a repressão da sexualidade”.
A censura, ao contrário, mutilava os filmes eróticos mediante critérios incompreensíveis – permitia a mostra de um seio, mas não de ambos; se um mesmo palavrão aparecia três vezes, exigia o corte de duas falas. É verdade, de acordo com Abreu, que os métodos da censura também serviam para promover o filme. O diretor e ator David Cardoso incluía tarjas pretas nos cartazes, sugerindo o encobrimento de cenas mais fortes. “A pornochanchada vendia o que não tinha para entregar, recorrendo a títulos insinuantes para isso. Um fato é que finalmente tirou-se a roupa com certa naturalidade nas telas. Mas os ângulos por baixo da saia, por dentro do decote, são próprios para um voyeur adolescente, com toda a carga de ingenuidade que isso traz”, diz o professor.
Explícitos – A pornochanchada, portanto, sempre esteve bem distante dos filmes de sexo explícito. Houve um período de transição, já nos anos 80, em que se inseriram cenas explícitas com “dublês”, mas estrelas como Helena Ramos, Matilde Mastrangi e Aldine Muller recusaram-se a participar de tais produções. Foram os filmes pornográficos, aliás, que decretaram o fim do cinema da Boca do Lixo, embora o modelo já se mostrasse desgastado.
“Os mandados de segurança liberando Império dos sentidos – considerado um filme de arte – e Calígula abriram a porteira para a invasão de pornôs”, recorda Abreu. Como a implantação das salas especiais para este gênero nunca se efetivou no Brasil, os explícitos foram desalojando a pornochanchada das grandes salas do centro da cidade. Estas, por sua vez, acabaram estigmatizadas e transformadas em templos, estacionamentos e supermercados.
Organizado na forma de documentário, o livro de Nuno Cesar Abreu entremeia dados de pesquisa, depoimentos e artigos, além de comentários do autor. Traz 16 entrevistas com remanescentes do star system da Boca do Lixo: Alfredo Sternheim, Aníbal Massaini, Carlos Reichenbach, Cláudio Cunha, Claudio Portioli, David Cardoso, Guilherme de Almeida Prado, Helena Ramos, Inácio Araújo, Jean-Claude Bernadet, Luiz Castillini, Mario Vaz Filho, Matilde Mastrangi, Ozualdo Candeias, Patrícia Scalvi e Sylvio Renoldi.
Editora da Unicamp vai disponibilizar a íntegra das entrevistas em www.editora.unicamp.br
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