sábado, 24 de janeiro de 2009

Reflexões críticas - Affonso Romano de Sant´Anna

8/12/2008
www.cronopios.com.br
Por Paulo Henrique Ferreira e Affonso Romano de SantAnna
Affonso Romano de Sant´Anna viveu intensamente os momentos vanguardistas dos anos 50 e 60 atuando em vários grupos, portanto sabe do que está falando em termos de arte contemporânea. Em O enigma vazio, o poeta e ensaísta vai além da crítica de arte e produz uma “crítica da cultura”. Ele considera que sua obra é um sistema, um “projeto poético-pensante” conforme diria Heidegger: poesia, ensaio, crônica e magistério que se informam mutuamente. Para dar forma a este livro, o autor revisitou por cinco anos todos os mais importantes museus do mundo. Os textos produzidos se relacionam com seus trabalhos anteriores: “Barroco, do quadrado à elipse” (Rocco), “Desconstruir Duchamp” (Ed. Vieira& Lent) e “A cegueira e o saber” (Rocco). [Paulo Henrique Ferreira]

1. De que forma a crítica da crítica pode auxiliar na reflexão dos caminhos que a arte contemporânea tomou no século XX?
AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA: Há, pelo menos, três tipos de “crítica”. A primeira é a critica informativa - de caráter jornalístico, tipo prestação de serviço ao público e uma outra que chamaria de crítica celebrativa. Esta é a crítica de endosso, feita às vezes de encomenda. A imprensa tende a misturar as duas, sobretudo depois da emergência dos divulgadores, curadores, galerias. Isto está mais para o “release”. Outra coisa é a crítica reflexiva, que se preocupa realmente em analisar obras e autores objetiva e independentemente. Segundo os estudiosos, desde os anos 60 estabeleceu-se uma certa confusão nesses campos. O que estou fazendo é uma metacrítica, a crítica da critica: pegar os grandes analistas (O. Paz, Jean Clair, Derrida, Barthes, etc) e ver alguns equívocos do discurso crítico deles. Se os grandes cometem tais erros, imaginem os diluidores?!

2. O exercício de desconstrução dos argumentos que você faz como quem pensa criador e criatura passaria por um processo semelhante da desconstrução e questionamento da linguagem artística – ou o que é arte? – feita pelos artistas e críticos de nosso tempo?
AFFONSO: Estou indo além da “desconstrução” posta em moda por Derrida: ouso dizer, ironicamente, que estou desconstruindo a desconstrução, que se julgava um método limite, insuperável, por que acreditava na onipotência de sua retórica e de certos sofismas. Esse repensar a arte se insere dentro de um esforço de repensar a cultura globalmente. Isto faz parte de meu projeto de rever os descaminhos do século XX. Sou um filho do século XX que está ousando questionar o pai. Há quase 20 anos, na poesia, escrevi o Epitáfio para o sec.20. No ensaio, explico isto.

3. Não seria natural que críticos – humanos que são – sucumbissem à subjetividade em um terreno bastante pantanoso que é a análise da obra artística? Ou você acha que a isenção, objetividade e reflexão foi claramente afetada pela falta de limites formais sobre o que é ou não arte na arte contemporânea?
AFFONSO: Sim, como diria Terêncio, os críticos são humanos e nada do que é humano lhes é estranho. Como, aliás, diria Nietzsche “humano, demasiadamente humano”. É bom que se reconheça certos autores como “humanos” e não como “super-homens” nietzscheanos. O que tento deslindar é um problema recente fascinante e grave: alguns críticos são romancistas e poetas frustrados. Barthes queria ser ficcionista, Derrida tinha um complexo de James Joyce mal resolvido. Pode parecer irônico, e o é, que seja eu, um poeta a dizer a certos críticos que parem de misturar as coisas e comportem-se primeiramente como críticos.

4. Marcel Duchamp transferiu para o espectador a responsabilidade por pensar a arte, transformando todos em artistas e críticos de arte. E qual foi (ou deveria ter sido) a responsabilidade dele? Pelo que hoje Duchamp teria de responder?

AFFONSO: Essa afirmativa de Duchamp é uma de suas conhecidas falácias. É uma esperteza enorme. Jogou nos outros a responsabilidade pseudo-artística. Até ensaístas que adoram Duchamp, como Octávio Paz e Jean Clair reconhecem que aí ele pisou na bola. O processo artístico não depende só do receptor, é mais complexo. Essa simplificação interessa aos carreiristas e aos que querem ter os 15 minutos de fama.

5. Quais os riscos do action writing? A partir de que ponto a obra sai das mãos do artista e torna-se obra do crítico e de suas idéias?
AFFONSO: Chamo de action writing essa paródia do action painting, é uma escrita desvairada, pretensamente literária, um blá-blá-blá pretensioso que se pretende hermético, para iniciados e é um rol de sandices. Se aplicarmos técnicas de análise de discurso e análise retórica, vemos como esses são discursos vazios, tão vazios quanto os “enigmas vazios” a que se referem. Esse tipo de crítica é tão má literatura quanto certa “arte conceitual”.

6. Para você, qual a função da crítica de arte? E como se faz para escapar dos devaneios artísticos-literários deste crítico-artista? Quais elementos constituem uma boa crítica de arte?
AFFONSO: A função da crítica é ampliar a leitura e propiciar o entendimento da obra. O crítico deve exercer o que chamo de “terceiro olhar”. A função do crítico é discernir, clarear, estabelecer categorias e não cair em armadilhas alheias, como ocorreu com Rosemberg, Danto e Geenberg. Quando você fala de “devaneio” é bom alertar que a crítica, como o processo de criação, não é a casa da mãe Joana. Essa bobagem que Duchamp disse que todo mundo é artista, todo mundo é crítico, não chega a ser engraçado. É apenas uma frase tola. Ele era o rei de frases tolas, nas quais as pessoas viam profundo saber. Num certo momento de sinceridade, aliás, ele disse: “cada palavra que lhes digo é estúpida e falsa”. Ele mesmo se chamava de “pseudo”, e assim por diante. Por isto é que uma das teses deste meu livro é que se deve analisar o discurso duchampiano, pois suas obras só têm sentido em relação a esse discurso. Espantosamente essa análise nunca foi feita antes.

6. Fale mais sobre este enigma vazio, esta tentativa de decifrar “algo”, dando a este “algo” alucinações críticas de obras insignificantes.
AFFONSO: Dizia Hanna Arendt, enquanto judia e filósofa, que se não conseguisse entender a lógica do nazismo, enlouqueceria. O mesmo eu me dizia a respeito da arte de nosso tempo. Isto tem que ter uma lógica, eu me dizia, deve haver um modelo de análise para essa anomia, para esse caos, essa entropia, para todas essas contradições discursivas. Acredito ter tocado no cerne da questão. Diferentemente de enigmas verdadeiros, a arte contemporânea está cheia de enigmas vazios que muitos tentam preencher com uma verborragia igualmente insossa.

8. Como você vê a arte contemporânea hoje – particularmente a brasileira?
AFFONSO: Esclareço uma vez mais que não sou “contra” a arte contemporânea. Aponto alguns de seus descaminhos. E dentro desse imbróglio há muitos artistas que admiro. Tentam, no entanto, confundir a questão dizendo que sou o “inimigo número 1” da arte contemporânea. Tolice. Ela não precisa de mim para isto. Seus inimigos estão dentro dela. Duchamp é um deles e ele cinicamente reconheceu isto ao dizer no fim da vida: “Este século é um dos mais baixos na história da arte”. E o próprio Jean Clair que o admira e fez a primeira retrospectiva dele em 1977, reconhece que foi ele quem abriu a “Caixa de Pandora”. Por isto, é que insisto que há que voltar a Duchamp para uma releitura, que não seja como essa que anda por aí, de pura louvação, acrítica. E essa leitura tem que ser feita na área da filosofia, da retórica, da teoria da literatura como mostro no meu livro.

9. E, por conseguinte, como vê a crítica de arte hoje?
AFFONSO: Em geral é uma crítica de endosso, é a crítica institucional de uma arte “institucionalista” como a definiu o antropólogo Howard Becker. E é uma crítica esquizofrênica, que está no poder, fingindo que é margem. Aliás, a figura da falsa “margem” tem servido bastante a essa esquizofrenia. Por isto, analiso no livro o fenômeno do “double bind”, do laço duplo, dos oxímoros ideológicos da modernocontemporaneidade

10. Em O enigma vazio você também aborda questões como a mercantilização da arte, que muitos consideram um retorno ao mecenato. Por que você discorda desta comparação?
AFFONSO: Sem se estudar isto não se entende o “êxito” e a anomia geral das artes. Ela serve à sociedade da aparência, da falsa cultura. Ela virou um apêndice da bolsa de valores, até se fala de “bolsa de artes”. E as ações e valores dos quadros são virtuais, sobem e descem de acordo com a circunstância. Há livros fundamentais analisando isto e eu também entro nessa questão.

11. Futurólogos sempre arriscaram previsões como o fim da pintura, por exemplo. E hoje ela continua aí e é cada vez mais valorizada. Arriscando um exercício de futurologia, como você vê os caminhos que a arte pode tomar?
AFFONSO: É sintomático que o século XX, que matou mais gente que qualquer outro, tinha mania de matar tudo, a arte, o romance, a poesia, a história, o “homem”. Verdadeira tanatomania. Hitler, Mao Tse Tung e Stalin ficam muito bem num século em que outros tentaram matar a arte e até a própria história. Pois não houve o caso daquele pensador da CIA Francis Fukuyma, que anunciou o “fim da história” e dez anos depois veio pedir desculpa, dizendo que se enganou, que a história continuava? Duchamp fez a mesma coisa, no final da vida entrou para o Instituto Nacional de Letras e Artes dos Estados Unidos. Cinismo ou autocrítica?

12. Finalizando: o que é arte para você?
AFFONSO: Essa pergunta é inevitável nas dezenas de palestras que tenho feito pelo país e no exterior. É uma pergunta mal colocada. Se não aprendemos a colocar as questões não teremos respostas razoáveis. O modo apropriado, depois de cem anos de acertos e muitos erros, é inverter ou tratar questão pelo avesso: o que não é arte?

Muitos produtos que estão aí nos museus e galerias pertencem à psicanálise, outros à sociologia, ao marketing, à antropologia, à literatura, à filosofia. Quando essas disciplinas se debruçarem devidamente sobre a questão, então poderemos voltar à pergunta sobre arte. Por isto, insisto nessa operação multidisciplinar para afastar o entulho.

De resto, os que pregam o “fim da arte” equivalem-se aos ateus, têm que falar de Deus para serem ateus.

Lamento muito em informar que ao contrário do que se acreditou no século XX, a arte não acabou, a arte é uma fatalidade do espírito humano e arte não é qualquer coisa que qualquer um diga que é arte, nem é crítico qualquer um que escreva sobre arte.

Affonso Romano de Sant’Anna é poeta, cronista, professor, administrador cultural e jornalista. Tem mais de 40 livros publicados, ensinou em universidades estrangeiras e nacionais e, à frente da Biblioteca Nacional (1990-1996), criou o Proler, o Sistema Nacional de Bibliotecas e programas de exportação da cultura brasileira.

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