Para o historiador britânico, Portugal tende a considerar que a Independência do Brasil foi um presente do colonizador, e não consequência da luta dos habitantes do país
(6/3/2000)
Para Maxwell, comemoração revela autoconfiança brasileira
Nome: Kenneth Maxwell
Idade: 59 Cargo: diretor de Estudos Latino-Americanos do Conselho de Relações Exteriores de Nova York
Especialidade: relações entre Brasile Portugal no século 18
Livros: "A Devassa da Devassa" (1985), "Marquês de Pombal - Paradoxo do Iluminismo" (1996), "A Construção da Democracia em Portugal" (1999)
HAROLDO CERAVOLO SEREZA
Editor-adjunto interino de Especiais
Para o brasilianista britânico Kenneth Maxwell, as comemorações dos 500 anos de Descobrimento revelam uma espécie de autoconfiança brasileira, diferentemente do que se passou em países como México e Estados Unidos em 1992 -quando completaram-se cinco séculos da chegada de Cristóvão Colombo à América.
Maxwell, diretor de Estudos Latino-Americanos do Conselho de Relações Internacionais de ova York, é um dos mais importantes estudiosos da história do Brasil e de Portugal. Escreveu, entre outros, "A devassa da Devassa", sobre a Inconfidência Mineira, e "Chocolate, Piratas e Outros Malandros - Ensaios Tropicais".
Na entrevista à Folha, de Nova York (EUA), Maxwell -também autor de "A Construção da Democracia em Portugal", sobre o período pós-Revolução dos Cravos (1974), lançado em Portugal, mas não aqui- fala sobre o distanciamento entre os dois países.
Folha - Como o sr. vê a relação entre Brasil e Portugal hoje?
Kenneth Maxwell - Após o período da Independência (1822), há uma grande diferença no progresso da história. Há várias zonas de contato do ponto de vista da cultura, mas, na vida cotidiana, elas são hoje sociedades completamente diferentes. Portugal tem mudado muito, mas ainda tem uma sociedade muito fechada em relação à brasileira.
Folha - Quando essa relação começou a se distanciar?
Maxwell - Já antes da Independência, mas isso varia de acordo com a região. Se você volta para o século 17, no Nordeste, Pernambuco esteve separado de Portugal, durante a presença holandesa. No final do século 18, isso se torna mais claro. A Inconfidência Mineira (1789), a Baiana (1798), todas essas revoltas eram antiportuguesas, em vários sentidos.
Folha - O que, para o sr., diferencia hoje o Brasil de Portugal?
Maxwell - A grande diferença é econômica. O Brasil é um país continental. Os brasileiros sentem-se parte de um grande país, enquanto os portugueses acham que são ainda menores do que realmente são. Nesse sentido, o Brasil, como civilização, é mais parecido com os Estados Unidos.
Folha - Não lhe parece que Brasil e Portugal celebram os 500 anos de modo um tanto quanto independente, como se o Brasil não tivesse sua origem na história portuguesa?
Maxwell - Concordo. A Folha trouxe, no final do ano passado, uma polêmica entre o historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro e o cineasta português Manoel de Oliveira que ilustra essa distância. Para Oliveira, a Independência não passou de um presente de Portugal, não uma conquista dos brasileiros, o que é muito típico do pensamento português, uma falsa impressão da história.
Folha - As escolas de samba de São Paulo e Rio decidiram que o Carnaval seria só sobre os 500 anos. Para o povo, a festa é mais importante que para as elites?
Maxwell - Não, acho que são coisas diferentes. As duas coisas podem acontecer. Podemos fazer uma analogia com as comemorações dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo na América (1492). Houve reações variadas. Exibições, festas, mas também diferentes maneiras de interpretar o que se passou. É preciso considerar as divisões na sociedade. As pessoas vêem a história de maneira diferente porque têm vidas diferentes. Se seus antepassados chegaram num navio negreiro, você verá a história de um modo diverso do que aqueles cujos parentes vieram em caravelas.
Folha - No Brasil, os mais pobres vêem nos 500 anos um fato mais relevante que as elites?
Maxwell - O Brasil tem uma cultura popular muito forte, e talvez essa impressão tenha origem aí. É algo muito diverso do que se passou no México e nos EUA, em que havia forte rejeição à idéia de ser "descoberto" e "colonizado". Brasileiros têm mais autoconfiança.
Folha - Usa-se a palavra "descobrimento" no Brasil, enquanto em Portugal volta-se a utilizar também "achamento"...
Maxwell - Portugal também se valeu, no século 19, da palavra "encontro", evitando assuntos difíceis, como a escravidão e a colonização. Talvez o Brasil use mais tranquilamente a palavra "descobrimento" devido a essa autoconfiança, mas essa é uma falsa visão. Os que foram "descobertos" acabaram, na verdade, eliminados.
Folha - Portugal e Espanha utilizam as comemorações como um bom momento para recontar a história a seu modo?
Maxwell - O que acontece é que há sempre uma reinterpretação da história. Mas é preciso considerar que nada patrocinado pelo governo tem relação direta com a realidade, mas com imagens que ele quer criar e manipular de acordo com seu interesse político. As pessoas criam também as próprias imagens.
Folha - Para o sr., o que está mudando na história do Brasil nesse momento?
Maxwell - Esta foi uma década muito importante para a historiografia brasileira. Os historiadores brasileiros têm feito um grande trabalho, olhando para a vida cotidiana, para a cultura. É uma oportunidade para olhar para o passado. O Brasil é um país que está sempre preocupado com o futuro, mas já tem cinco séculos.
Folha - Qual é, para o sr., a palavra correta para descrever o que aconteceu há 500 anos?
Maxwell - Acidente. Os portugueses queriam chegar às Índias.
Folha - Essa palavra tem mais de um sentido.
Maxwell - É verdade. Para os índios, a chegada do europeu foi também um acidente, numa outra conotação, mais trágica.
Folha - Para definir o paradoxo do Marquês de Pombal, o sr. usa uma citação: "Pombal quis civilizar a nação e, ao mesmo tempo, escravizá-la". Qual é o paradoxo do Brasil de hoje?
Maxwell - O Brasil tem uma sociedade dinâmica, enquanto o sistema político é rígido. É interessante pensar no período pombalino, em que o Estado busca modernizar toda a sociedade. As grandes modernizações têm de ocorrer no longo prazo.
Folha - Usualmente, a grande data nacional era o Sete de Setembro. Para o sr., por que trocamos a festa da Independência pela do Descobrimento?
Maxwell - É uma pena. O período da Independência precisa ser recuperado e visto numa perspectiva que reconheça sua natureza completa -complexa e contraditória. Mas governos preferem "conciliação" a uma lembrança de conflito. Só compreendendo o conflito é que se pode ver como e por que uma nação se desenvolve -ou "não" se desenvolve.
Folha on line
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