sábado, 17 de janeiro de 2009

riscos de uma sociedade capitalista irresponsável - Nicolau Sevcenko


Em entrevista exclusiva, o historiador e professor de História da USP fala dos riscos de uma sociedade capitalista irresponsável e das conseqüências do atentado aos EUA

Após a queda do muro de Berlim e do império soviético, o capitalismo definitivamente assumiu o posto de regime econômico, e político, que regra os movimentos mundiais. Capitaneada pelos EUA, a situação vigente demarcou, com fortes traços, a linha que divide os chamados países de Primeiro Mundo e as nações pobres que se vêm em situação de desigualdade. Diante desse contexto, o historiador Nicolau Sevcenko analisa o grau de responsabilidade das nações dominantes, o fim da autonomia estatal e a galopante consolidação de uma "sociedade empresarial".

O senhor pode traçar um paralelo entre as circunstâncias históricas que geraram a Primeira Guerra Mundial e os recentes atentados nos EUA?
Há uma estranha similitude entre os eventos que desencadearam a Primeira Guerra Mundial e a situação atual. No evento ocorrido no início do século 20, houve a participação de um grupo minoritário que cometeu um atentado de característica artesanal, de pequena escala, mas com conseqüências catastróficas, que desencadearam o primeiro grande conflito de teor tecnológico que a humanidade conheceu. A guerra envolveu um amplo grupo de nações, o que a caracterizou como um conflito mundial, extrapolando os limites da Europa, estendendo-se para regiões mediterrâneas, da América, da África e da Ásia. Logo, foi um fenômeno que preconizou a globalização que estamos vivendo; ensejou a globalização da maneira como ela é articulada, ou seja, o elemento que sugere tanto a integração internacional como o crescimento econômico é a concorrência entre potências e a extensão dos interesses dessas potências sobre áreas que se tornaram subalternas aos estados europeus ou aos EUA. Esse quadro, um século depois, continua praticamente o mesmo e os riscos que ele envolvia àquela época se manifestam quase com as mesmas características. Num primeiro momento, surpreendeu-me essa conexão entre a Primeira Guerra e os recentes atentados, mas subitamente me parece muito revelador como certas estruturas permanecem as mesmas. É impressionante reconhecer que um poder que parece estar acima da escala humana e dos limites da possibilidade de intervenção por grupos minoritários, cuja possibilidade de manipulação tecnológica é baixa, ainda pode ser eventualmente deflagrado dessa forma, desencadeando processos históricos de conseqüências as mais dramáticas e de resultados imprevisíveis. Acho que o mundo ainda está chocado. É difícil avaliar o desfecho da ação, mas o pior cenário seria uma atitude de retaliação imponderada da liderança americana que rompesse o equilíbrio entre as potências, criasse desentendimentos com os Estados europeus ou outros Estados influentes asiáticos e, se não desencadeasse uma guerra, jogasse o mundo num quadro de tensão do qual imaginávamos estar definitivamente livres desde o fim da Guerra Fria. No começo de um novo século, voltaríamos, então, ao pior dos pesadelos.

A partir da configuração política do mundo atual, o senhor poderia traçar rapidamente a evolução dos acontecimentos que culminaram na hegemonia do capitalismo e do sistema liberal?
O processo foi conduzido praticamente pela dinâmica do próprio sistema capitalista, que foi constituído e consolidado em consonância com a ideologia liberal. No contexto do pensamento liberal, prevalece o sentido do primado do indivíduo e do individualismo como um agente livre de cuja iniciativa depende a dinâmica do sistema. Portanto, o conjunto do sistema é estruturado de forma a deixar aberto o caminho para as iniciativas individuais. Quem não as tiver ou quem as tiver de forma que não contemplem os potenciais estabelecidos e, portanto, redundem em fracasso, fica numa posição subalterna pela própria dinâmica do capitalismo. Esse sistema perverso gera, na linguagem do liberalismo anglo-saxônico em especial, a condição de ganhadores e perdedores. Nesse quadro, os recursos, as oportunidades e as formas de promoção social acabam sendo canalizados preferencialmente para o grupo minoritário dos vencedores em detrimento dos derrotados, que, por sua vez, sofrerão as conseqüências de um processo de alienação tanto das decisões, quanto das oportunidades e da distribuição das riquezas. Essa lógica, de certa forma, foi confrontada com o advento da Revolução Russa e a idéia da criação de uma comunidade de trabalhadores que dividiriam, igualmente, recursos, oportunidades e o processo de promoção social. Todos sabemos que isso não acabou se configurando como o planejado: a Revolução de 1917 culminou numa forma de capitalismo de Estado, altamente burocrático e muito ineficiente. Porém, mesmo assim, deu curso à idéia de que o Estado pode ter um papel decisivo na tentativa de equalização das posições sociais e na distribuição de recursos. Isso, no contexto da Guerra Fria, gerou uma situação na qual as nações capitalistas, a fim de concorrer com a propaganda comunista, viram-se forçadas a fazer do Estado um agente interventor, destinado a distribuir melhor os recursos, as oportunidades e as benesses da riqueza gerada pelo sistema capitalista. Assim sendo, durante certo tempo, de parte a parte, houve uma ênfase em se afirmar que o fundamental da riqueza era desenvolver o processo de bem-estar, visando a sociedade como um todo. No curso desse confronto, a lógica militarista da Guerra Fria levou os países a investirem predominantemente na corrida armamentista, redundando o que levou na debâcle, em particular do sistema comunista. Em última análise, o comunismo soviético foi corroído pelas suas próprias irracionalidades, pela incompatibilidade de resolver o problema do centralismo a partir das necessidades de diversificação, bem como do crescimento e da multiplicação do sistema econômico. Esse foi o fator que desequilibrou os dois blocos e que conduziu à reformulação do bloco comunista em função das diretrizes do sistema econômico, tal como proposto pelas nações capitalistas dominantes. Dessa forma, sem o contraponto do modelo comunista, abriu-se um curso livre para restaurar novamente a prática liberal centrada no primado do indivíduo, sem contar com a ação do Estado como elemento interventor encarregado de redistribuir e equalizar as posições dentro da sociedade. A transformação tecnológica, simultânea ao processo de desmontagem do bloco soviético, simbolizada pela revolução da microeletrônica e das comunicações, culmina numa enorme vantagem tecnológica em favor das nações capitalistas. Esse quadro gera uma espécie de autonomia das empresas em relação ao Estado.

O que significam o fim da autoridade do Estado e o advento da "sociedade das empresas" num momento de impasse como o atual?
Quem herda o mundo pós-muro de Berlim não são os Estados capitalistas, mas sim as empresas capitalistas libertas de Estados que se tornaram obsoletos do ponto de vista da necessidade ideológica do liberalismo. Assim, as empresas têm livre curso para agir em função dos interesses dos acionistas, mesmo que em detrimento do conjunto da sociedade, das considerações de caráter ambiental e da idéia de que o objetivo de qualquer sistema deve ser, ao final, a qualidade de vida de todos. No mundo do pós-guerra prevalece uma lógica que estranhamente se assemelha com a lógica de um século atrás, ou seja, a lógica do sistema vitoriano, de um capitalismo selvagem que antecedeu a promoção do sistema distributivista e qualitativista do Estado de bem-estar social. Esse é o nosso momento e o que se teme é que uma circunstância trágica e alarmante como a desses atentados contribua para acentuar ainda mais a idéia do livre curso, sem restrições ao capitalismo das grandes corporações. Nesse cenário, pode emergir uma tolerância excessiva para situações em que a democracia venha a ser utilizada como pretexto para o surgimento de grupos contestadores, que possam se tornar estimuladores de atividades terroristas. Assim, o pior resultado do momento atual seria colocar a democracia sob ameaça por uma guinada à direita por parte do conjunto do processo político encabeçado pelos EUA. Nesse caso, sairíamos de um quadro histórico ruim para um muitíssimo pior.

Qual a contrapartida da perda de autonomia dos Estados?
Com o processo de revolução da microeletrônica, da informática e das comunicações, as empresas ganharam enorme flexibilidade, de maneira que elas podem decompor e recompor o conjunto de seu sistema produtivo no sentido de conseguir os melhores resultados dessa mobilidade. Assim, as empresas podem estabelecer seu setor produtivo na parte do mundo onde os juros e os salários sejam os mais baixos e os sindicatos, os mais controlados, para ter lucros maiores. Além disso, as empresas colocam as filiais destinadas à captação de matérias-primas onde a legislação de proteção ao meio ambiente é menos elaborada. Depois, elas instalam seu sistema financeiro onde os juros são mais altos. Por fim, colocam sua direção e gerência administrativa na região onde a qualidade de vida é a mais alta possível. Então, desdobra-se a empresa de forma a ter o maior benefício possível das fragilidades e vantagens encontradas em todas as partes de um sistema econômica e politicamente desigual. Isso aumenta a lucratividade. A contrapartida desse processo é que se algum país não aceitar essas condições, a empresa simplesmente retira o seu investimento e o que resta ao país é minguar na miséria absoluta. Portanto, configura-se uma chantagem econômica. Mas como os países atrelados a um sistema aberto de investimento externo dependem desse circuito, os Estados locais encontram-se desprovidos de poder de negociação diante do poderio das grandes empresas. Ato contínuo, as grandes empresas ditam as negociações, bem como a agenda política desses países. Portanto, a situação do mundo foi refigurada de modo que o capitalismo se tornou transnacional e os Estados perderam sua soberania de maneira drástica. Por outro lado, os Estados-sede das empresas ganharam um poder de intervenção e de defesa de seus interesses que os transformaram em megapotências de abrangência mundial.

Existe uma forma de combate que permita às populações desfavorecidas fazerem frente a essa situação?
Essas novas tecnologias, sobretudo as de informação, permitem uma comunicação em grande escala em todo o planeta. A idéia é que se as populações não têm mais como lutar no âmbito local, pois as sociedades e os Estados ficaram fragilizados diante das empresas, elas devem se coligar de país para país, numa escala internacional, exatamente como fazem as empresas, criando uma base de resistência em âmbito mundial. Essa comunidade engajada se uniria na defesa dos interesses sociais e ecológicos e da qualidade de vida, sobretudo contra a ganância das empresas e do poder excessivo com o qual elas se põem a barganhar a desvantagem dos Estados nas circunstâncias atuais. Portanto, a mesma tecnologia que destituiu a sociedade e que diminuiu o poder dos Estados pode ser reassumida como um novo caminho para uma cidadania que reflita condições locais projetadas em uma arena de debates de alcance internacional. Utilizando instrumentos de pressão dos órgãos internacionais, como a ONU, as ONGs e as agências humanitárias, seria possível repor as grandes corporações dentro de um código de princípios éticos que coloque o ser humano, a natureza, o planeta e as futuras gerações como prioridades de qualquer processo de desenvolvimento econômico. Devido às transformações nas comunicações, existe a possibilidade de a sociedade se organizar para pressionar as elites políticas conservadoras, neoliberais e neocolonialistas a se verem na contingência de atender ao que é o clamor social global e não apenas de uma sociedade em particular. É um pouco esse o grito que se ouviu nas manifestações que ocorreram durante as reuniões da OMC por toda a parte do mundo: um grito de "não" contra a idéia de que os países estão em condição de igualdade, como se não houvesse um passado de exploração que colocou a maior parte do planeta na penosa condição de ser submetida aos interesses de poucas potências dominantes.

Esse, no entanto, não é o posicionamento das lideranças latino-americanas, no geral, e brasileiras, em particular, que continuam a se curvar ante as exigências dos potentados econômicos.
Há um sentimento bastante nítido de que a sociedade se sente frustrada com o projeto dos atuais governantes, que pretenderam colocar a América Latina dentro do processo de transformação internacional para trazer o desenvolvimento para cá. Acreditava-se que a América Latina estaria em condição de entrar em situação de igualdade e simultaneidade com o conjunto das transformações e se beneficiar delas. O que percebemos foi o oposto: a América Latina entrou em sintonia com um quadro que em vez de beneficiá-la, acentuou as desigualdades e a espoliação do meio ambiente, além de diminuir as perspectivas de futuro e promoção social. Portanto, a elite atual mostrou que é incapaz de desenvolver um projeto que enfrente as questões de desigualdade entre as partes desenvolvida e subdesenvolvida do planeta. A forma de negociar não é tentando negociar por igual, nos termos do liberalismo, mas se articulando como uma liderança política que busca uma alternativa ao discurso liberal, no sentido de resgatar as conseqüências do colonialismo e do escravismo que deixaram os países subalternos em desvantagem nas suas relações e nos termos de troca com as potências dominantes. Há, portanto, uma defasagem em termos históricos entre as potências dominantes e as periferias subalternas do mundo, resultado de um processo injusto que até agora não foi resgatado: é uma dívida do passado que deve ser equacionada a fim de constituir uma situação de solidariedade internacional em autênticos termos de igualdade. Para isso, é preciso uma outra liderança. Uma liderança que pense a América Latina e o Brasil do ponto de vista do peso de seu passado, do peso de sua submissão colonial, e que reflita sobre a maneira como esse quadro resultou em uma sociedade desigual, com uma pequena elite que se beneficia das alianças políticas com as potências externas, em detrimento do grosso da população. Torna-se necessário repensar um projeto político no qual se compensem essas pessoas pelo fato de terem sido alijadas dos benefícios do capitalismo e do crescimento econômico e as coloque em posição de poderem, de alguma forma, compensar esse passado nefasto com uma situação de oportunidades melhores de participação no conjunto dos benefícios do sistema e da economia internacional. Isso só pode ser conseguido por meio de um conflito com a ideologia vigente nos países dominantes, representada pela ideologia neoliberal que privilegia as empresas e os indivíduos, fazendo tábula rasa do passado histórico, como se todos estivéssemos começando agora. Na verdade, existe um rescaldo histórico que deixa a parte periférica do mundo numa situação de permanente desigualdade que só vai se acentuar caso prevaleça o modelo neoliberal.

Quais são os riscos que envolvem essa nova configuração mundial, em que as empresas visam constantemente ao lucro, munidas de uma carga enorme de irresponsabilidade com o futuro do planeta?
A lógica do sistema econômico força as empresas a viverem enfronhadas num terrível processo de corrida pela concorrência e a colocarem, com isso, os lucros como prioridade. Na medida em que o seu processo de capitalização depende cada vez mais do mercado de capitais e esse mercado responde diretamente aos relatórios de rentabilidade e distribuição dos ganhos acionários, a lógica que preside a empresa não é mais a mesma que presidia as empresas de base familiar. A nova empresa é pensada sob a perspectiva de produzir lucros imediatos para serem redistribuídos para que produzam relatórios superavitários cuja repercussão na bolsa seja favorável, possibilitando a maior captação de recursos e assim por diante. Isso cria uma situação que leva a empresa a ser pensada sob a ótica da maior imediatez possível. O resultado é que as empresas perdem o sentido de responsabilidade social e de responsabilidade com o tempo e com as gerações futuras. Esse presentismo as leva a tentar ganhar o máximo possível quaisquer que sejam as conseqüências para as comunidades envolvidas. Se for necessário, substituem grandes contingentes de trabalhadores por um aparato técnico, causando desemprego, pois o que importa é a lucratividade. Mesmo o impacto ambiental é desprezado em função dos relatórios de desempenho. Essa é a lógica da grande irresponsabilidade. Ninguém responde senão pela contabilidade mais imediata possível. Com isso, tomam-se decisões que de imediato têm um impacto sobre a sociedade e o meio ambiente, e que no futuro implicarão conseqüências negativas e irreversíveis. Estamos deixando aos nossos herdeiros um mundo cada vez pior, como se essa fosse a lógica intrínseca do sistema. Esse é o problema ético do presentismo e exige urgentemente uma revisão ética, que só tem espaço em escala mundial e a longo prazo.

Diante desse quadro, qual o papel da História e do historiador na discussão, na reflexão e na eventual resolução dos impasses que se colocam?
Ele se torna cada vez mais importante. Isso se reflete no interesse cada vez maior em torno de temas históricos. Na medida em que a própria dinâmica do sistema capitalista implica essa aceleração constante e as transformações tecnológicas da microeletrônica, da informática e das comunicações acentuaram enormemente a corrida em direção ao futuro, perde-se a dimensão do passado, a dimensão temporal. Nos sentimos sem referências para refletir sobre como projetar o que se passa em função dos interesses das próximas gerações. Acredito que a reflexão histórica seja capaz de fazer as vezes desse leme de orientação, em particular em um momento como o atual, em que a própria lógica da sociedade da informação trabalha com bancos de dados acionados por sistema binário, que é um sistema de lógica formal e que não tem incluído em si nenhuma dimensão temporal que permita uma perspectiva crítica a distância. A História estabelece um sentido de deslocamento que nos possibilita observar o processo sem nos sentirmos arrastados pela pressão dessa aceleração. É a História que dá possibilidade de parar para respirar, a fim de recuperar outros paradigmas para julgar o funil para dentro do qual estamos sendo rapidamente sugados. É a História que nos permite ver o quanto tal funil nos convém ou não e o que podemos fazer para evitar que nosso futuro seja decidido sem que tenhamos tempo de refletir sobre o que está acontecendo. Nesse sentido, o papel do historiador é da maior importância e ele tende a ser cada vez mais acionado. Os cientistas sociais sentem que mais do que nunca este é o momento de parar para refletir e deixar de ser incorporado por esse curso único e conformista que quer fazer crer que a história acabou e que o mundo assumiu uma configuração única na qual todos devem se ajustar, pois é a única alternativa que nos restou. Longe disso, a tecnologia é um potencial e não uma resposta. É o homem que deve definir o que quer dela e não ela que decide o que quer do homem.
out de 2001

Sesc-SP

Nenhum comentário: