sábado, 17 de janeiro de 2009

Temos uma dívida com a África - Katia Mattoso


Katia de Queirós Mattoso
Historiadora brasileira radicada em Paris acha que o país deve aproveitar efeméride para rever condição de ex-colônia
(13/3/2000)

Temos uma dívida com
a África, diz Katia Mattoso
Nome: Katia de Queirós Mattoso
Idade: 68 Cargo: titular da cadeira de História do Brasil da niversidade de Paris-Sorbonne
Especialidade: história econômica e social da Bahia (1750-1889), história social da escravidão no Brasil (1549-1888). Doutora em Ciência Política pela Universidade de Lausanne e em letras e ciências humanas pela Universidade de Paris-Sorbonne
Livros: "Bahia no Século 19 - uma Província no Império" (Nova Fronteira, 1992), "Ser Escravo no Brasil" (Brasiliense, 1982)
OTÁVIO DIAS
Especial para a Folha, de Paris
"A idéia de um país nascido como colônia e esmagado pelo colonizador foi dominante na historiografia brasileira. Mas, nas últimas décadas, o Império Português começou a ser visto como um triângulo, constituído por Portugal, Brasil e África, sobretudo Angola". Essa é a opinião da cientista política e historiadora Katia de Queirós Mattoso, 68, professora emérita da Universidade de Paris-Sorbonne, onde, desde 1988, é titular da cadeira de História do Brasil.

Para Mattoso, a efeméride dos 500 anos do Descobrimento é o momento adequado para o Brasilrepensar seu passado: "Esse problema de identidade só será resolvido quando começarmos a nos pensar não mais como colonizados, mas como parte do Império ortuguês". Leia abaixo os principais trechos de entrevista realizada em seu apartamento, em Paris.

Folha - A sra. considera importante comemorar os 500 anos do Descobrimento do Brasil?
Katia Mattoso - As comemorações só têm sentido se levarem a uma reflexão sobre o nosso passado. Temos um problema de identidade que se origina no momento de nossa separação de Portugal. Durante muito tempo, a tendência dos historiadores e dos intelectuais foi jogar a culpa sobre o período colonial. Nossa personalidade tardaria a vir porque fomos colônia. O problema de identidade só será resolvido quando -e esse é o momento de fazer isso- começarmos a nos pensar não mais como colonizados, mas como tendo feito parte de um grande império, o Império Português.
O Brasil desempenhou um papel extremamente importante nesse império, principalmente após o século 17. Não era um apêndice de Portugal. Se pensarmos nossa história junto com aqueles que foram o ponto de partida do que o Brasil é hoje, encontraremos elementos para nos identificarmos de forma diferente da que fizemos até agora.

Folha - A sra. pode dar um exemplo desse papel central do Brasil no Império Português?
Mattoso - O etnólogo Pierre Verger (1902-1996) foi o primeiro a mostrar que o Brasil, desde o princípio do século 17, mantinha relações diretas com a África no comércio de escravos. O tráfico realizado por Portugal só existiu no começo. Desde o século 17, nós, brasileiros, já estávamos em Angola. A Bahia teve relações intensas com a África até o século 19. Essa troca só deixou de existir quando o continente africano foi dividido e colonizado pelas potências européias. Então o Brasil não pôde mais se meter na África.

Folha - O Brasil e a África ganhariam com uma retomada dessa relação?
Mattoso - Sim. Se olharmos dessa forma, veremos que temos uma dívida com a África e que deveríamos contribuir para auxiliar países como Moçambique e Angola, de onde vieram muitos de nossos escravos. Devemos reparações morais a esses povos.

Folha - O nome de um dos seus livros mais conhecidos é "Ser Escravo no Brasil". Hoje, 500 anos após o Descobrimento, como seria um livro que tivesse o título "Ser Negro no Brasil"?
Mattoso - Negro e escravo são dois termos que, até certo ponto da história do Brasil, definiam a mesma situação. Eram sinônimos. Atualmente não há escravidão, mas temos uma grande população negra e, às vezes, sua situação ainda se assemelha à que existia no passado. Isso porque os negros, depois de libertos, tiveram de fazer seu caminho sozinhos. Não receberam o apoio institucional necessário. É importante dizer que a posição do negro brasileiro atualmente depende também do peso que tem dentro de determinada sociedade, em especial nos meios urbanos.

Folha - Como assim?
Mattoso - Em áreas onde os negros são majoritários -a Bahia é um caso exemplar-, há pessoas negras que ocupam posições nos mais variados escalões da sociedade. A posição do negro na Bahia não é a mesma do negro em São Paulo, embora São Paulo tenha um prefeito negro. Em sua gênese e em seu desenvolvimento inicial, São Paulo é uma cidade de brancos. O enegrecimento da cidade é recente. Em regiões como a Bahia, o negro é muito mais presente. Isso não quer dizer que ele tenha facilidade de ocupar qualquer posição porque ainda existe um forte espírito escravista nessas sociedades.

Folha - Na Bahia, o negro tem uma participação maior, mas, ao mesmo tempo, o preconceito continua?
Mattoso - Sim, em áreas de cultura de cana-de-açúcar, como Pernambuco, Bahia, Paraíba e também no Rio de Janeiro, há uma cultura escravista mais forte. Os escravos começaram a chegar à Bahia já na segunda metade do século 16. Em São Paulo, eles só chegaram no século 18. Isso faz com que a relação mestre de escravos-escravo ainda esteja, de certa forma, presente. A reação ainda é a de ver o negro como descendente de escravos. Isso tende a desaparecer, mas ainda existe.

Folha - A sra. se refere às elites brancas da Bahia?
Mattoso - Não, é um comportamento mais ou menos generalizado. Inclusive porque a maioria da elite baiana tem alguma origem negra. Basta ir à Faculdade de Medicina de Salvador, onde há retratos de todos os professores desde a sua fundação, no início do século 19. Muitos são mulatos ou negros. Isso não aparece em nenhum registro, mas basta ver os retratos. Na Bahia, o negro é majoritário e a sociedade precisa funcionar com a maioria. Mas ainda existe um tratamento que lembra a época escravista.

Folha - E por que isso tende a desaparecer?
Mattoso - Porque a cidade de Salvador é hoje uma grande metrópole, não tem nada a ver com o que era há 15 anos. A população mais pobre está melhorando de vida. A indigência continua a existir, mas os excluídos começam a ter uma superfície social que não tinham antes. Por exemplo: as antigas favelas eram de madeira. Atualmente, as casas são de tijolos. Continuam miseráveis, mas houve um progresso. Também é preciso destacar o trabalho feito pelas associações negras da Bahia, que souberam se impor.

Folha on line

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