segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Milton Hatoum - Prêmios Jabuti e Portugal Telecom


Ao receber os prêmios Jabuti e Portugal Telecom, o escritor natural de Manaus se consagra como um dos principais ficcionistas da atualidade

Ele nasceu em Manaus, passou parte da infância em Brasília, estudou em São Paulo, na França e na Espanha, lecionou nos Estados Unidos. Atualmente mora na capital paulista, mas no próximo ano voltará a viver nos Estados Unidos e ainda sonha em morar no Rio de Janeiro. Homem do mundo e em permanentemudança, Milton Hatoum é também um autor universal. Sua rica infância no mundo árabe de Manaus e a experiência de andarilho moldaram o escritor que é hoje. Bem redigida, sua literatura é limpa de cacos modernistas e lembra os grandes romances do passado. Não por acaso, suas grandes paixões são Flaubert e Faulkner, dois excelentes mestres na arte de tornar universal um mero drama familiar.

A busca pela simplicidade exige sacrifícios. Um deles é o tempo para urdir o texto e deixá-lo de seu agrado. Uma crítica pertinente é o suficiente para reescrever um livro inteiro, como de fato fez com Dois Irmãos (2000), seu segundo livro – precedido por Relato de um Certo Oriente (1989) e seguido de Cinzas do Norte (2005). Esse último ganhou o Jabuti 2006 de melhor obra de ficção e diversos outros prêmios, como o Portugal Telecom na mesma categoria. Dois Irmãos, também bastante premiado, foi considerado por uma parte da crítica o livro da década. Seus personagens centrais, os gêmeos Yaqub e Omar, entraram para a galeria de nomes antológicos da Literatura brasileira.

Em entrevista, Hatoum apresenta o tema de seu quarto livro, a ser lançado provavelmente em 2007, “a não ser que tenha que reescrevê-lo por inteiro”, como ele mesmo diz. O enredo agora não trata mais de jovens desgarrados da sociedade, mas narra a história de um velho às voltas com um passado de amor e um presente decadente no interior do Amazonas. A seguir, trechos da entrevista concedida a Discutindo Literatura:

DISCUTINDO LITERATURA (DL) – O que o moveu a passar da carreira de professor a escritor?MILTON HATOUM (MH) – Antes de começar a dar aulas eu já escrevia, só que não havia publicado nada. Aliás, só um livro de poemas de 1978, chamado Poesia dos Corpos. Nesse período estava me formando em Arquitetura pela FAU/USP, e depois fui morar na Espanha e na França, onde fiz o mestrado. Quando voltei para Manaus, em 1984, ingressei como professor na Universidade Federal do Amazonas, mas eu já tinha, nessa época, o esboço do meu primeiro romance, Relato de um Certo Oriente (1989). O ofício de professor, na verdade, não dificultou o trabalho de escritor. Acho que no fundo o magistério me ajudou a escrever. O trabalho de professor exige muito. Tem que ter muita dedicação, dar muitas aulas, muitas leituras.

DL – Sempre lecionou em universidade ou também para o Ensino Médio?

MH – Sempre em universidade. Aqui no Brasil, na Federal do Amazonas; e nos Estados Unidos, na Universidade de Berkeley. Em 2007 retorno aos EUA, mas dessa vez para Stanford, onde ficarei quatro meses dando um curso sobre Literatura latino-americana.


DL – Você escreveu três livros em pouco mais de 20 anos. Imagino que deva reescrever seu trabalho intensamente.

MH – Por conta do magistério, eu não tinha tempo para escrever. Meu primeiro romance demorou muito. Então decidi sair da universidade para me dedicar só à Literatura. Mas cada escritor tem seu ritmo, sua maneira de trabalhar. Você só pode escrever um livro caso suas questões estejam bem elaboradas, por isso não consigo escrever uma obra em pouco tempo. Na verdade, reescrevo o livro diversas vezes; é um jogo de paciência. Em Dois Irmãos, por exemplo, meu editor e meus amigos Raduan Nassar e Horácio Costa leram e fizeram observações muito pertinentes. Tive que praticamente reescrever todo o livro, até porque as observações eram comuns entre eles. Quando há um comentário isolado até dá para desconsiderar, mas quando a crítica é recorrente, a vaidade precisa ser deixada de lado.
DL – A leitura de seus livros nos transmite a impressão de que você tem um apreço especial pelo romance do século 19 e começo do 20, uma vez que sua literatura se assemelha formalmente à produção daqueles períodos.

MH – Acho uma negligência os escritores não admirarem a Literatura do século 19, porque os grandes romances foram escritos naquele período e também na passagem para o século 20. Balzac, Stendhal, Flaubert, Virginia Woolf, Proust, Conrad e outros. Então, não falar do século 19 é abolir o que há de melhor no romance. Mas há ainda escritores que acreditam em histórias e personagens complexos e que não narram linearmente. Muita coisa que se ouve hoje e que se chama de ousadia já foi feito lá atrás: já estava no Proust, no Joyce, no Faulkner. E para escrever você precisa primeiro elaborar uma questão, perguntar qual é o sentido histórico, individual que você quer dar ao seu romance. Sem isso ele fracassa. E a linguagem também tem que ter um vínculo profundo com a matéria do livro.

DL – Você acha que esse vínculo se perdeu na segunda metade do século 20?

MH – Sim, perdeu-se porque falta experiência de vida, de leitura mesmo. Mas eu li agora um jovem autor, Daniel Galera, que escreveu Mãos de Cavalo [Companhia das Letras, 2006], um livro muito forte. Também li o Sérgio Rodrigues, com As Sementes de Flowerville [Objetiva, 2006]. São jovens que demonstram ter alguma experiência de vida. Mas, mesmo assim, quase sempre é importante mais tempo para elaborar um texto.

DL – Parece que seus primeiros dois romances apresentam caráter bastante memorialístico, quase “autobiográfico”, enquanto no terceiro, Cinzas do Norte, isso se perde. É isso mesmo?

MH – Eu acho o contrário. Meu terceiro romance é o mais autobiográfico. Muitos leitores, porém, têm a mesma impressão que você. Acho que ela se dá por conta da questão da imigração árabe ser muito explorada nos dois primeiros romances; já no terceiro não há nada sobre isso. Mas diria que os dois primeiros são os mais descolados da minha vida. Cinzas do Norte tem passagens que eu vivenciei e que depois reinventei. Não é exatamente aquilo que eu vivi, mas é a partir de alguns fatos que eu presenciei.


DL – Seus livros possuem características regionais e universais ao mesmo tempo, e sua origem, do Norte, dão uma idéia de nova fronteira da Literatura. Basta lembrar de Machado de Assis escrevendo regional e universalmente sobre o Rio de Janeiro do século 19. Depois, os regionalistas do Nordeste, Guimarães Rosa em Minas e Érico Veríssimo no Rio Grande do Sul. Seu trabalho também se enquadraria nessa caracterização ao mesmo tempo regional, de um país que se desenvolveu para o Norte, e universal?

MH – Na verdade não considero minha Literatura nem um pouco regionalista. Mas estava faltando naquela parte do País uma Literatura que tratasse do drama familiar com um pano de fundo histórico, e que falasse sobre a cidade de Manaus também. Não existia muito texto, muita ficção sobre isso ainda. E foi um espaço que acabei ocupando.As coisas, porém, não aconteceram de forma planejada nesse sentido. A gente vai escrevendo e atraindo leitores, mas eu tinha medo de cair numa Literatura muito exótica, muito local. E o leitor realmente percebe esse caráter local, mas ao mesmo tempo universal com personagens e tramas complexos. E é isso que pode interessar, ou seja, ler algo sobre um mundo diferente do dele. A Literatura volta a ser uma fonte de conhecimento.
DL – Como incentivar o aluno a ler mais? Você acha que a Literatura brasileira do século 19 assusta o estudante não acostumado com aquela linguagem?

MH – Acho que alguns contos do Machado [de Assis] podem ter grande interesse para os mais jovens. Eu mesmo com 13, 14 anos comecei a ler esses contos porque minha mãe comprou, por acaso, as obras completas desse autor. O conto A Causa Secreta, por exemplo,é extraordinário. Ou então Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou A Terceira Margem do Rio, de Guimarães [Rosa]. Tem uma novela extraordinária do Gabriel García Marquez chamada Crônica de uma Morte Anunciada. Se um jovem de 15 anos ler esse livro ele vai passar a gostar de Literatura.
DL – Mas não é comum indicar a literatura latino-americana ou de outros lugares nas escolas brasileiras.

MH – Mas deveria ser dado Kafka, Dostoiévski, Tolstói ou Flaubert. Em Manaus, no colégio Pedro II, eu tive contato com essa Literatura e é sempre importante que você tenha espaço para ela, pois nossa Literatura também se alimenta da Literatura escrita lá fora. Sempre há tempo para ler um livro estrangeiro, Swift, Cortázar, Borges, enfim. Ao mesmo tempo sei das dificuldades do professor para implementar essas leituras.

DL – De volta a seus livros, parece que há um fio condutor comum claro permeando as três obras. Você também identifica essa ligação?

MH – Eu acho que é a posição do narrador nos três livros. São narradores deslocados socialmente, com lugar instável na sociedade ou na família.


DL – Você também parece ter se sentido deslocado em Manaus depois de um tempo...

MH – Eu tinha vontade de sair, de conhecer o mundo. Manaus naquela época era de fato muito isolada e, por conta disso, saí de lá muito jovem, sozinho. Acho que foi um pouco traumático. E esse é o tema de Cinzas do Norte, uma história de amizade na qual um dos amigos vem para o Sudeste e o outro fica por lá. A idéia de partir de um lugar é uma grande parte da minha vida. Mas chega uma hora que cansa. Por exemplo, eu queria muito morar no Rio de Janeiro, porém, meu filho nasceu em São Paulo e criou raízes. Isso dificulta esse sonho.


DL – O leitor estrangeiro dos seus livros tem a mesma percepção de universalidade que temos no Brasil ou ele identifica algo exótico?

MH – Eles entendem como um romance universal, mas que tem também um lado pictórico, que fala da imigração, da Amazônia. Eles não vêem pelo lado exótico. Ao contrário, uma crítica de The New York Times até comentou que no livro não tinha nada do realismo fantástico tão característico da Literatura latino-americana. Eles entenderam que é um romance realista, mesmo.


DL – Seu quarto livro terá a mesma ligação que comentamos sobre seus outros três livros?

MH – Já estou acabando uma novela, que segue um pouco nessa linha, sim. É uma história de amor contada por um velho. Mas não tem nada a ver com o livro do Gabriel García Marquez, Memórias de Minhas Putas Tristes. Mas também não é só a história de um amor, e sim a de vida e decadência de um homem que perdeu tudo no interior do Amazonas. Se tudo der certo, entrego até março.
Sérgio Vale é jornalista
Revista Discutindo Literatura

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