sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Loic Wacquant - OS PÁRIAS DAS CIDADES

Loic Wacquant
10/04/2002

Entrevista de Favia Costa com o sociólogo Loic Wacquant, reproduzida da Revista Tiempos Modernos e publicada originalmente em Le Monde Diplomatique. Versão on line no site www.forumsocialmundial.org.br

Crítico implacável das políticas que reprimem os desamparados, Loic Wacquant, em Párias Urbanos, Editora Manantial, analisa a trágica multiplicação das desigualdades no interior das metrópoles.

Para Wacquant, estamos frente a uma nova marginalidade, uma nova era na história da pobreza. De Blade Runner para cá, tornou-se cada vez mais freqüente a idéia de que as grandes cidades caminham inexoravelmente para o modelo que Manuel Castells batizou como “cidade dual”, onde o que foi espaço comum, fraciona-se em dois territórios polarizados, cada vez mais distantes entre si: opulentas zonas residenciais e enclaves miseráveis de pobreza e marginalidade.

Longe de aceitar essa imagem como o único futuro possível, o sociólogo francês Loïc Wacquant propõe-se demonstrar que tal processo não tem nada de natural ou que não se possa frear. Em seu livro Párias Urbanos, recentemente publicado em espanhol pela editora Manantial, o pesquisador do Collège de France e professor da Universidade de Berkeley faz o rastreamento das origens da concentração espacial da miséria, da retração do Estado social, da desestruturação da economia, da precarização do emprego e da busca de alternativas para frear esse movimento.

Reconhecido discípulo de Pierre Bourdieu, com quem escreveu Respostas a partir de uma Antropologia Reflexiva, há tempos que Wacquant vem trabalhando esses temas. Em sua trajetória, inclui estudos comparativos sobre a desigualdade urbana, a dominação racial, as políticas de criminalidade e a teoria sociológica. Seu último livro, na realidade, é uma trilogia sobre as causas, o funcionamento e os efeitos da marginalização, que começou com Os Cárceres da Miséria (já traduzido em treze idiomas) e completa-se com Punir os Pobres, que será publicado em castelhano no final deste ano.

Convidado pela Universidade de Buenos Aires para uma série de conferências, Wacquant mostrou-se não só um entusiasmado contador de estórias, como um observador preciso da realidade atual, inclusive argentina. Neste diálogo, fala de seu último livro. Para escrevê-lo foi preciso transformar-se, entre outras coisas, em lutador de boxe. “Queria fazer um trabalho de campo com os jovens do gueto negro de Chicago e me inscrevi em um ginásio de boxe. Acabei disputando o grande torneio da cidade”. Além disso, o autor traça uma comparação entre um gueto norte americano, um bairro da periferia de Paris e uma "favela" (villa miseria) na Argentina. Explica por que, nos últimos anos, desenvolveu-se um “novo estatuto para a marginalidade”, que converte a todos nós em potenciais párias urbanos. É contra o preconceito que opõe “crítica teórica” a “prática política”, e defende a capacidade criativa da teoria social para interferir e modificar a realidade.

* * *

Como chegou a publicar esse livro? Quais foram as principais questões que orientaram sua pesquisa?

Este trabalho nasceu de um duplo choque existencial: em 1985 mudei-me para Chicago para fazer doutorado em Sociologia. Aluguei um apartamento muito próximo ao gueto negro, no limite entre o Hyde Park, um opulento bairro de brancos, situado na área em torno da Universidade, com um potente esquema de policiamento privado e telefones de emergência em cada esquina, e o pobre, deprimente e perigoso bairro negro de Woodlawn. Foi como viver em uma fronteira racial e de classe. Não podia deixar de sentir medo e, por vezes, me perguntava: como era possível a sociedade mais rica do primeiro mundo, suportar o peso de tal desamparo e segregação, em pleno coração de suas cidades? Assim, comecei a pesquisar a transformação do gueto afro-americano, desde os anos 60 até nossos dias. Em seguida, tive outro choque. No início dos anos 90, produziu-se uma epidemia de pânico na Europa, causada por um fenômeno eventual: os guetos de imigrantes. Temia-se uma “americanização” das metrópoles européias, caracterizada por um círculo de pobreza, desespero e violência racial. Recordo-me, em especial, de um artigo de Alain Touraine publicado no Figaro, onde comentava que as cidades francesas estavam “a caminho de Chicago”. Esta afirmação, baseada em vagas impressões pessoais e imagens midiáticas, pareceu-me cientificamente inaceitável e politicamente irresponsável. Decidi, então, unir as duas pesquisas. Por um lado, avancei em meu estudo sobre a transformação do gueto, através de questionários e trabalho de campo -- foi assim que entrei no bendito ginásio de boxe. Por outro lado, comecei a comparar a evolução do “cinturão negro” norte americano (os restos do gueto negro histórico das grandes metrópoles) com o “cinturão vermelho” da França, esses bairros operários de subúrbio, hoje em decadência, convertidos em territórios de segregação urbana.



Que conclusões extraiu da comparação entre os casos norte-americano e francês?

Minha comparação iluminou, em primeiro lugar, uma diferença básica entre a origem racial e política da extrema pobreza nos EUA. Lá, a exclusão urbana é produto da conjunção entre divisão de casta e iniqüidade de classe, reforçadas por uma política de restrição econômica e redução do bem-estar sustentado pelo Estado, desde meados dos anos 70. Nestes anos, a pobreza concentrou-se ainda mais nos guetos negros, porque os negros estão na interseção de três forças: a deterioração do trabalho motivada pela desindustrialização, a desorganização econômica e o auge do emprego ocasional; a persistência de uma rígida segregação racial; as políticas públicas que diminuíram a rede de proteção social e, em seu lugar, expandiram as “constrangedoras” redes de policiamento e presídios que são hoje, nesse país, os principais instrumentos para lidar com os pobres. Em resumo, a miséria no país mais rico do planeta, tem duas raízes: uma econômica e outra política. Ambas estão estreitamente ligadas entre si e, ainda, são ampliadas pela dominação de casta que permanece separando os afro-americanos do resto da sociedade.

Essa diferença de origem é o que nos impede de falar de uma “americanização" da pobreza nas cidades européias?

Exato. Um segundo resultado de meu estudo consiste em mostrar que, ao contrário da percepção média e dos slogans políticos fáceis, as cidades européias -- e acrescentaria aqui também as cidades argentinas -- não estão desenvolvendo “guetos”. É claro que a miséria está crescendo nas periferias urbanas, concentrando-se cada vez mais, e tornando-se mais sistemática e ameaçadora. Aí também, uma das causas básicas é a degradação do trabalho assalariado e crescimento do desemprego e do subemprego. Mas a composição e função dos bairros de exilados europeus não são as mesmas do gueto norte-americano.

Qual é a principal diferença?

Em primeiro lugar, nos bairros de exilados europeus misturam-se pessoas naturais do lugar e estrangeiros das mais diversas origens. Portanto, são etnicamente heterogêneos. Ao contrário, nos guetos existe homogeneidade. Em segundo lugar, os bairros de exilados europeus não abrigam redes de instituições paralelas que organizam as vidas cotidianas de seus residentes à margem das instituições da sociedade que os rodeia. Em terceiro lugar, as pessoas são expulsas e direcionadas para esses bairros devido, sobretudo, a sua posição de classe, e não tanto por razões de cor ou etnia. Quer dizer, esses bairros são, na verdade, antiguetos, o que não significa que sejam melhores que os guetos, mas simplesmente que são diferentes, e assim devem ser entendidos, através de sua própria lógica.

Por que é tão importante para você diferenciar “gueto” de “antigueto”?


Permita-me dar-lhe um exemplo: tanto no gueto norte-americano como na banlieue (bairro de periferia) francesa houve um incremento da violência nas últimas duas décadas. Então, poderíamos dizer: “isso ocorre porque guetos e antiguetos então se tornando cada vez mais parecidos; ambos são de algum modo guetos e igualmente perversos”. Neste caso, estaríamos perdendo de vista os mecanismos que alimentam a violência e que são completamente diferentes em cada um dos casos: nos guetos dos EUA, a hostilidade e a agressão se devem à distância social e econômica, cada vez maior, entre o sub-proletariado negro e o resto da sociedade. Nas periferias francesas, a xenofobia e os incidentes racistas originam-se na crescente proximidade entre filhos de imigrantes e filhos da classe operária francesa, que se sente ameaçada pela competição representada por esses ex-imigrantes, no momento em que seu mundo está entrando em colapso por causa da pressão da desindustrialização. No caso dos EUA, é o medo do “outro” o que gera a animosidade; no caso francês o temor surge porque o “outro” está se transformando em um “igual”.

No final do livro, você assinala um novo regime de “marginalidade avançada” que transcende tanto o gueto como o antigueto, e que marca uma nova etapa na história da pobreza urbana.


Efetivamente, eu argumento naquela parte do livro que existe um novo tipo de pobreza, diferente da miséria que conhecíamos na era fordista-keynesiana, era da expansão do crescimento industrial e do Welfare State, entre 1945 e 1975. Em primeiro lugar, a pobreza agora é produto, não só da falta de trabalho, mas da abundância de trabalho ocasional, inseguro, mal pago, o que nos faz perceber que não haverá solução apenas com o aumento de emprego. Em segundo lugar, a pobreza urbana concentrou-se em territórios que estão “desconectados” das economias nacionais. Isto é, pioram nos momentos de recessão econômica, mas não melhoram nos períodos de reativação, porque os benefícios que são obtidos pelos setores com alta qualificação e salários altos não são alcançados pelos setores mais baixos da escala. Em terceiro lugar, enquanto esses últimos permanecem desempregados ou empregados em condições indignas, perdem o sentido do bem comum e os laços afetivos com o lugar onde vivem. Finalmente, esses “párias urbanos” não possuem uma linguagem coletiva para articular suas experiências e reivindicações. Esse fato agrava seu desamparo. Antes dizíamos, “trabalhadores”, e englobávamos uma grande maioria dos habitantes dos bairros pobres. Hoje só temos definições negativas: os sem emprego, os sem teto, os sem documento. Isso mostra a falta de categorias para descrever esses grupos e construir um discurso que sirva de veículo para suas reivindicações. Eu estou chamando esse regime de “marginalidade avançada” porque ela não é expressão de atraso: floresce paralelamente aos mais avançados setores da economia.

Quais são as implicações de sua análise para as cidades argentinas?

A Argentina, como outros países da América do Sul com alguma industrialização (e também o Sul da África e da Ásia) estão enfrentando o pior cenário porque, nestas áreas, existe o desenvolvimento das duas formas de marginalidade, ao mesmo tempo. A "favela" (villa miseria) do ano 2000 não é a mesma dos anos 70; hoje é uma entidade híbrida que, às vezes, sofre pela falta de trabalho industrial no velho estilo e pela abundância de novos empregos precários, que não oferecem o mínimo de estabilidade social. A perversidade que este dilema cria é que todas as políticas que tentam reduzir um dos tipos de pobreza, automaticamente ampliará o outro, alimentando um duplo descontentamento, o do povo e o das elites do Estado, que sem levar em conta a ineficácia demonstrada em outros países, insistem em implantar políticas direcionadas unicamente para a contenção punitiva da miséria, justificada por um discurso que culpabiliza os pobres por seus problemas. Por todo lado, o século XX parece um retorno ao século XIX: a retórica vitoriana que critica a “imoralidade” e a “irresponsabilidade” dos pobres e, deste modo, desculpa e exime de responsabilidade coletiva a classe política e a burguesia transnacional que controla o destino do capitalismo desregrado.

Neste livro você assinala os perigos de políticas que implicam na “criminalização da pobreza”. O que significa exatamente criminalizar a pobreza?


Significa tratar a insegurança social como se fosse meramente insegurança física e responder às desordens urbanas e conflitos gerados pela pobreza persistente, e à ausência de um futuro viável, com a polícia e o aparato penal do Estado. As demandas por mais policiamento, pela ampliação das penas para delitos leves, por “varrer” das ruas os indesejáveis, a política da “tolerância zero” e do “pulso forte”, e o endurecimento dos regimes carcerários, expressam um impulso por responsabilizar o sistema jurídico-criminal pelas conseqüências negativas do desregramento da economia e da redução da proteção social; em síntese, tenta tornar opacos os problemas sociais criados pela submissão ao “livre mercado”. A glorificação do Estado Penal serve a um duplo objetivo econômico: forçar o novo proletariado a aceitar empregos inseguros como seu horizonte normal de vida e mandar para casa os que estão “sobrando”, aqueles para quem já não há horizonte dentro da economia.

Porque essa retórica contra os pobres está tendo tanto êxito hoje em dia? Porque o velho estereótipo essencialista, de que há classes “naturalmente perigosas”, voltou e se difundiu tão rapidamente?

Hoje, está circulando uma grande onda de angústia social, produto da transformação do trabalho assalariado: convivência cada vez mais freqüente do desemprego, como experiência de grandes massas e de várias gerações; e a extensão da categoria de normalidade para um tipo de trabalho precário, ocasional e mal pago. Essa “dessocialização do trabalho” faz com que, nem mesmo as famílias de classe média, possam sentir-se seguras com relação a seu futuro e às suas habilidades para transmitir aos filhos seu status social, cultural e econômico. A insegurança do trabalho determina uma instabilidade na vida cotidiana que se traduz em um profundo sentimento de temor, o qual, por sua vez, se projeta, desviado de sua rota, sobre as figuras dos delinqüentes de rua, dos sem teto, dos imigrantes ilegais e das minorias de cor, que simbolizam o medo da decadência social e do desamparo. Por isso, ninguém quer ver os sem teto pedindo esmola na rua: eles nos recordam que, de fato, “ele poderia ser eu”. Na era do trabalho assalariado dessocializado, e da absoluta mobilidade do capital, todos somos potenciais párias urbanos. Todos, exceto evidentemente os que possuem o capital cultural necessário para competir por empregos de altíssimo nível, ou capital econômico suficiente para não precisar vender sua força de trabalho para viver. Aqui estamos novamente na violenta divisão característica do capitalismo selvagem da época de Marx, exceto porque, agora, este opera em escala global, de fato. Portanto, não há como escapar dos estragos que provoca.

É possível frear este processo, aparentemente inexorável, em direção a uma sociedade polarizada que gera, ao mesmo tempo, abundância e miséria, opulência e desgraça?

A sociologia não é um inútil exercício intelectual, uma “arte pela arte”: é um instrumento para que os cidadãos repensem o mundo, com vistas a tentar transformá-lo e conferir-lhe perspectivas mais humanas. Escrevi este livro porque creio que existem possibilidades reais de resistir e, inclusive, de modificar a direção do processo, evitando o desmoronamento ainda maior da economia, o desmantelamento do Estado Social e a expansão do Estado Penal. De fato, essas três tendências estão unidas por suas causas e, também, funcionalmente. Combater uma delas é combater as outras. Mas para lutar, tanto no nível nacional como no internacional, é necessário, em primeiro lugar, identificar o inimigo. Isto, hoje, significa medir os imensos custos sociais e humanos que a utopia neoliberal do livre mercado supõe realizar.

Revista Vivercidades

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