sábado, 10 de janeiro de 2009

João Batista de Andrade - Reflete sobre mercado mundial


O diretor João Batista de Andrade
Reflete sobre mercado mundial
Entrevista a Ana Cândida Vespucci
e Leonor Amarante



Revista Nossa América: Na sua opinião como se encontra a produção cinematográfica latino-americana hoje?

João Batista de Andrade: Acho que hoje o cinema latino-americano passa por uma fase em que os realizadores estão se incorporando à produção mundial do cinema independente. Esse é o grande fenômeno. No Brasil, acalentou-se a idéia de se fazer um cinema independente, autoral, que iria ocupar o mercado. Na realidade, aconteceu que outras cinematografias estavam na mesma sintonia, competindo conosco e, assim, criou-se no mundo um mercado específico ocupado por esse cinema, em que tanto entram o cinema iraniano, o independente americano, o japonês, o chinês, o argentino, entre outros. O que aconteceu? Muitos cineastas, vários deles latino-americanos, vão ganhando um espaço dentro dessa nova configuração mundial de produção cinematográfica.


R.N.A: E isso é positivo?

J.B.A: Hoje os cinemas se assemelham um pouco, a diversidade já não é tão grande e, além disso, são usados como modelo pela nova indústria cinematográfica, a indústria independente. Fui a um debate com distribuidores, há alguns anos, e a uma determinada altura um deles falou: vocês precisam fazer mais filmes como Morango e Chocolate , do cubano de Tomás Gutierrez Alea, de 93. Nós os independentes brasileiros reagimos. Havia uns nove distribuidores do cinema independente, do mundo inteiro e alguém perguntou: algum de vocês investiu no projeto do filme Morango e Chocolate? Todos riram, porque o diretor cubano procurou recursos para a produção e não conseguiu, o filme saiu sem que ninguém tivesse investido nada, pegaram para distribuir, deu certo, ganharam muito dinheiro e o que é que eles pediam agora? Para fazer outro igual.


RNA: Eles tentam sinalizar os caminhos da produção cinematográfica?

J.B.A: Sim, mas dissemos que era um absurdo. Não interessava mais, repetir a idéia seria inútil, um fracasso. Arriscar ninguém quer arriscar nada, mas todos ficam de olho na produção independente do mundo inteiro. Os cineastas penam, tentam viabilizar a idéia durante anos, às vezes levam uma década, quando conseguem produzir e um ou outro filme, sabe-se lá porque cargas d`água, faz sucesso, aí os distribuidores pegam, ganham dinheiro e pregam que precisamos fazer um filme igual. Nós mesmos acabamos criando padrões que os distribuidores depois nos impõem. É assim que o cinema passa a ser influenciado por essa pressão e torna-se padronizado, todo mundo parecido também pela tendência de superar as questões nacionais, ao tratar de temas de uma forma mais universal, perdendo a nacionalidade.

R.N.A: Qual a posição do cinema latino-americano no mundo?

JBA: O problema é que os americanos dominam o mercado. Uma posição difícil de combater, uma vez que não se trata de coisa mecânica e sim cultural, ideológica. O próprio crítico está tomado por isso, e o sistema educacional submetido à idéia de que cinema é cinema americano.


R.N.A: Mas isso não está mudando? A impressão que passa é que o mundo está mais aberto ao cinema de outras procedências. Ou não?

J.B.A: Não. Não está mudando. Se está, é muito pouco. Nós ainda trabalhamos nas bordas. No ano passado, em que o cinema brasileiro fez furor, chegou-se ao que me parece, a 20 ou 24 por cento da produção, depois caiu de novo. Cresceu mais do que devia. Agora voltou à realidade, está em torno de15%. Somadas todas as produções independentes, se chegar, não chega a 30%, num momento excelente. Se o cinema brasileiro recuou para 12, 14, 15 por cento, a produção independente exibida no Brasil não vai passar dos 20 e poucos por cento, considerando-se todo esse furor internacional. Nós ficamos impressionados porque somos de classe média, do meio intelectual, vamos às salas exibidoras, como Unibanco, Espaço Frei Caneca, e achamos que, de fato, está crescendo. Veja bem, o indivíduo entra para ver um filme em um espaço que faz dois mil espectadores por semana, e fica lá oito semanas, até 20 semanas, e fez quantos espectadores? Em torno de 40 mil espectadores.


R.N.A: O Filho da Noiva, do argentino Juan José Campanella, que ficou 2 anos em cartaz?

J.B.A: Também não representa muito. Quantos espectadores conseguiu fazer? Cem mil? Isso não é muito, causa impressão só a quem tem acesso, freqüenta. Na verdade, continuamos na periferia. Melhorou um pouco, aumentou a participação, mas ainda é pequena. Em relação ao vídeo é ainda pior, uma vez que o domínio nessa esfera é maior ainda, há o domínio tecnológico também, sob o controle das grandes indústrias americanas. Nos anos 90, quando o Collor acabou com o cinema brasileiro, eu sempre era convidado para aberturas de sala de vídeo. Foi a época em que se abriram as grandes distribuidoras de vídeo no Brasil. As festas eram impressionantes, e eu saia arrasado. Muito carro, manobristas de sobra, milhares de fitas, e a gente andava naqueles salões e não via um filme brasileiro, nem um filme latino-americano, nada, só filme americano. Durante os anos 90, a dominação nesse segmento consolidou-se no mundo inteiro, o cinema americano voltou a se impor, como já havia feito no mercado cinematográfico tradicional. O cinema brasileiro e o cinema latino-americano viraram um gênero nas prateleiras: drama, romance, mistério, filme brasileiro, filme latino-americano...


R.N.A: Hoje, em grandes vídeo-locadoras, os filmes latino-americanos podem estar reunidos em uma divisão chamada " interesses especiais". É possível achar os títulos mais famosos, mas em certos casos são várias prateleiras vazias e meia dúzia de fitas.

J.B.A: A sociedade brasileira é aberta à relação com a indústria, com a cultura internacional, e a competição torna-se absolutamente desleal. Um filme aqui, uma grande produção, vamos dizer de 4 milhões de dólares, como o Carandiru, por exemplo, compete com um filme que custou 80 milhões de dólares, quer dizer o custo do filme nacional é o custo do trailler do filme americano. Aqui você luta para ter 60 milhões de reais, ou 100 milhões de reais na indústria cinematográfica. A diferença é muito grande de poder de ocupação, e aí entra a questão da televisão também que é muito importante. Nos Estados Unidos, a legislação regula a invasão de áreas; lá não é possível, por exemplo, o indivíduo ter um açougue e ter um frigorífico, a economia americana sempre teve esse tipo de preocupação, assegurar que seu açougue não venda somente carne do seu frigorífico, porque caso contrário como ficam os demais. No cinema é a mesma coisa: os exibidores também não poderiam produzir para os seus cinemas. A televisão, igualmente, estava proibida, portanto não criou uma produção própria e foi obrigada a comprar da indústria cinematográfica.


R.N.A: Até quando ocorreu isso?

J.B.A: Até dois, três anos atrás. As regras mudaram porque chegou-se a um ponto em que concluiu-se que já não havia mais necessidade. A indústria americana de cinema estava consolidada inclusive na sua produção para televisão, nenhuma emissora se interessa em criar. Resultado disso é que a televisão americana exibia filme americano.


R.N.A: A América Latina sofreu os reflexos?

J.B.A: Todas as concessões para televisão foram feitas sem nenhuma restrição, as emissoras sem quaisquer obrigações com a realidade cultural do país, além de ser mais barato comprar filmes estrangeiros -- para os americanos, o mercado deles é o fundamental, por isso eles vendem barato para fora. Compram-se pacotes inteiros. O SBT, por exemplo, de vez em quando apresenta um pacote, um atentado à cultura brasileira e ao cinema nacional, anunciado com alarde umas duas, três vezes por ano, até 20 filmes sem nenhum brasileiro, nenhum latino-americano, nada.


R.N.A: E isso ocorre também nas outras emissoras.

J.B.A: Em todas. A Globo faz isso naturalmente, e apresenta apenas bobagens, séries, aqueles filmes para adolescentes, filmes de terror, policiais, basta ver a grade, nenhuma produção brasileira, o filme nacional mantendo-se na prateleira. Isso ocorreu também em toda América Latina. Como resultado, as televisões tornaram-se prejudiciais ao cinema local, até porque é tão popular que criou esse mito de que o que existe passa na televisão. Se não passa na televisão ou não é bom ou não existe.


R.N.A: Há como reverter esse quadro?

J.B.A: Temos que fazer um esforço para convencer a sociedade de que nossa produção cinematográfica é de boa qualidade. É uma batalha permanente na América Latina toda. Na TV Argentina, o cinema brasileiro também não chega e vice-versa. Enfim, trata-se de um grande mercado todo dominado, fica difícil intercambiar.


R.N.A: Então não há saída?

J.B.A: Não é fácil, é uma pergunta difícil. Nós tentamos fazer um mercado comum latino-americano, também não andou, agora tenta-se de outra maneira criar um sistema latino-americano de televisão, a TAL; e tem uma outra, ligada à Venezuela, que o Hugo Chavez está incentivando, mas muito provavelmente também vai correr pela borda. Não vai competir com a Televisa, nem com Globo, SBT ou Record, vai concorrer diretamente com a TV a cabo.


R.N.A: E com a TV Cultura?

J.B.A: Também não, nem com a Cultura, se bem que ela tem registrado uma audiência baixa, 1%, então, eventualmente, pode ser uma concorrente, mas eu acho que nem assim. O problema todo é o cinema americano, quer dizer, ou a América Latina cria mecanismos de bloqueio dessa invasão americana ou não tem jeito.


R.N.A: Mas você não acha que alguns tratados como o Mercosul, ou a Alca também, não poderiam ser um canal?

J.B.A: Sim, mas não dá para obrigar as cadeias de exibição e as emissoras de televisão a comprarem os filmes, esse é o problema. A ação pública vai até certo ponto, depois o público tem que demonstrar interesse em assistir e as cadeias exibidoras precisam acreditar no autor. Não se trata apenas de legislação, é uma questão cultural. Penso que o importante é desenvolver a cinematografia e ajudar a divulgar o cinema latino-americano pelo mundo todo, porque às vezes para ter público no Brasil, é mais fácil se apresentar no Exterior e depois voltar. O próprio cinema argentino, também, o caminho é ir para fora primeiro, fazer sucesso e depois entrar no Brasil.


R.N.A: Mas o mercado ainda funciona dessa maneira?

J.B.A: De certa forma sim. Quando eu lancei O Homem que Virou Suco ele não foi bem, depois ganhou o Prêmio de Melhor Filme em Moscou, voltou, e fez uma boa carreira no mercado nacional. Acredito que o importante é trabalhar muito as cinematografias, porque elas estão num caminho de busca, de realização. Para o bem ou para o mal, culturalmente é uma outra discussão, mas por bem ou por mal, o caminho que os cineastas estão perseguindo na América Latina tem muito a ver com a globalização, com a criação dessa que estou chamando de uma nova indústria cinematográfica, ligada à produção independente. Acho que a posição do cinema latino-americano no mercado vai melhorar com a integração, isto é, você ter no mercado internacional filmes que são latino-americanos e que, portanto, devem passar a ser mais aceitos aqui. Outra coisa seria a gente lutar para ter espaços nas televisões latino-americanas, já que é um veículo para você se colocar. Falo de televisão aberta, a cabo também, a cabo é um meio, mas o público é muito pequeno. A Globo sabe disso, só se endividou com a TV a cabo porque apostou num crescimento que ficou longe do que ela imaginava. A diferença de público é muito grande. Resumindo, na minha opinião, o desenvolvimento do cinema nacional mais a abertura das emissoras poderiam ser aliados na difusão do cinema latino-americano.


R.N.A: Você acredita que diante da força da distribuição do cinema norte-americano há uma forma de escoar a produção cinematográfica latino-americana. Que caminho seria o mais fácil ?

J.B.A: Esse é o grande desafio para o cinema latino-americano, que talvez tenha mudado de padrão no relacionamento internacional a partir o Festival de Cinema de Havana, em 79. Eu participei dessa primeira edição com o filme Greve, média-metragem do mesmo ano. Poderia ter sido preso na volta, só não fui por causa do Prêmio Especial do Júri que recebi. No entanto, o Itamarati foi avisado e alguns funcionários foram nos buscar. Passamos por fora do cerco, por isso escapamos...


R.N.A: Mas o que aconteceu em 1979?

J.B.A: Tentou-se firmar uma visão latino-americana do cinema, porque as relações até então eram muito fortuitas. Mas já havia uma predisposição. O cinema de outros países latino-americanos foi bastante influenciado pelo cinema novo brasileiro, mas o cinema novo brasileiro, por sua vez, também sofreu influência do cinema argentino. Enfim, existia um certo intercâmbio, uma mútua influência, porém à distância. Em 79, a gente conseguiu juntar várias produções, em Havana. O cinema cubano, com Santiago Alvarez, o boliviano com Jorge Sanjinez, o chileno com Miguel Littin, o mexicano com Paul Leduc, o argentino com o Solanas. A partir daí, passamos a ter um relacionamento mais sistemático, mais organizado. Pelo menos no que se refere aos cineastas, cineclubistas, enfim o cinema desses realizadores passou a circular na América Latina. Foi um avanço. Não chegava ao grande público, mas pelo menos a área de cinema passava a ser informada. O duro foi daí para frente.


R.N.A: A fase acabou?

J.B.A: Acabou a era dos cineclubes, a do cinema latino-americano, gênero Festival Latino-Americano, aquele dos anos 70, realizado sob ditadura. Era um cinema mais aguerrido, tanto o brasileiro, como os chileno, argentino e boliviano. Eu não diria que se tratavam de cineastas militantes, nem os brasileiros. Apenas alguns, como Sanjinez, que mais se aproximou do cinema militante. Ele fez vários filmes ligados às lutas camponesas. Mas essa fase acabou, as ditaduras acabaram e, de certa forma, a indústria cinematográfica cresceu, veio a globalização e o cinema tomou um outro rumo, tanto no Brasil quanto em outros países latino-americanos.


R.N.A: O que ocorreu para que o cinema latino-americano chegasse aonde chegou nos dias de hoje?

J.B.A: Aqui no Brasil surgiu uma nova geração de cineastas com a qual eu briguei muito, vários desses jovens foram meus alunos, o Allain Fresnot, o André Klotz, o Chico Botelho, o Wilson Barros que morreu, o Djalma Limongi Batista, enfim esse pessoal que trabalhou comigo, ou aqueles para quem eu produzi ainda no tempo da Raiz. A questão é que eu vinha de um cinema em que o mais importante era a luta contra a ditadura, portanto, era fortemente crítico, e eles queriam um outro olhar. Custei a entender. Cheguei a deixar a vida acadêmica na época. Eu que vivia perseguido pela direção da escola (ECA-USP), só saí por não concordar com os alunos, voltados para um outro tipo de cinema.


R.N.A: E quando você mudou de opinião sobre essa nova concepção?

J.B.A: Um dia, eu me perguntei: e por que não? Fiz uma revisão de postura -- focando outras questões, presentes no universo deles, como o problema das drogas, por exemplo. Eu não tinha conseguido conciliar essas diferenças. Enfim, foi isso que aconteceu com o cinema brasileiro, e latino-americano.


R.N.A: Eu acho que não só no cinema, mas nas artes de uma maneira geral, acabou a pressão ideológica que enquadrava criador e criação como sendo de direita ou de esquerda. Agora, embora trilhando um caminho diferente, há uma produção jovem e crítica, concorda?

JBA: Na verdade eles foram buscando caminhos politizados e críticos. Nem todos evidentemente. De qualquer maneira, acho interessante que haja uma diversificação, com muito mais liberdade. No entanto, há também alguns pecados: esse caminho, livre das amarras políticas do passado, provocou, em certos casos, um completo desligamento frente à realidade social brasileira.


R.N.A: E quais são as conseqüências?

J.B.A: O cinema brasileiro ingressa numa fase um pouco frívola, enquanto o cinema argentino entra pesado, abordando a realidade da ditadura. Quero dizer que a gente ganha de um lado e perde de outro. A crítica que eu fazia com relação a essas novas tendências podiam ter sido resolvidas de outra maneira: não continuar fazendo o que fazíamos, mas algo como os argentinos, um cinema menos ideológico que focalizasse questões sociais, sem deixar de tocar em pontos importantes. Mas não, partimos para uma concepção um pouco frívola.


R.N.A: O que na sua opinião determinou esse rumo, oposto ao anterior?

J.B.A: Acho que um pouco o cansaço de toda uma geração de cineastas. Na verdade, a ditadura demorou demais, houve um momento, justamente em fins dos anos 70, em que se desmoralizou, mas não acabou, durou até 85. Foi um período em que eu mesmo mudei o meu cinema. Eu estava na Globo da década de 70, fazendo o Globo Repórter. Em 77, conclui que precisava mudar. Fiz um documentário, o Caso Norte, com atores, sofistiquei ao máximo o gênero. Fez sucesso, ganhou prêmio da crítica como um dos 10 melhores programas de TV do ano. No ano seguinte fiz Wilsinho Galiléia, uma continuação que foi proibida. Eu dizia que havia a ilusão de que a ditadura tinha acabado, mas, na verdade, ela ainda tinha muita garra. O filme era um longa para ser exibido em dois programas do Globo Repórter. Criaria, um problema grave na maior emissora brasileira, no horário nobre. Dias Gomes, também, teve capítulos de novela censurados, o Bernardo Élis idem, com o conto A Enxada, um caso especial, censurado.


R.N.A: Essa situação provocou sua vontade de mudar?

J.B.A: Sim. Senti necessidade de mudar no final dos anos 70, começo dos 80. Fiz A Próxima Vítima, um filme político, usando estrutura de filme policial e, em seguida, O País dos Tenentes, um filme muito sofisticado.


R.N.A: Depois daquele cinema aguerrido, que havia sido sua marca até então, você lançou mão de toda sofisticação disponível. Essa foi sua guinada?

J.B.A: Eu vinha de um cinema duro, de rua, de combate, senti necessidade de avançar. Decidi usar todos os recursos que antes não cabiam naquele cinema imperfeito, de câmera na mão. Em O País dos Tenentes usei grua, mini-grua, filmei em cima de carro, de helicóptero, tinha de tudo, lancei mão do que foi preciso. Isso mostra que espírito havíamos desenvolvido na época. De todo modo, não abri mão de uma visão crítica da história e da sociedade. O fato é que o pessoal ficou tão cansado que abandonou esse cinema para fazer outra coisa, completamente diferente, e muitos fizeram belos filmes.


R.N.A: Houve ganhos com isso?

J.B.A: O filme Anjos da Noite de Wilson Barros, é um trabalho lindo, a despeito do caminho que tomou, sem vínculos com a realidade brasileira. Por isso, eu acho que há ganhos para o cinema brasileiro, quando você faz um filme como Anjos da Noite, porque é muito criativo, o filme é bonito. No entanto, há perdas de raiz, característica do cinema brasileiro, e dos liames com a realidade nacional, e ainda com o público brasileiro, que é importante, na verdade, muito importante. Basta ver o que ocorreu com Central do Brasil, que não é um grande filme, mas só pelo fato de ter uma ligação com a vida brasileira gerou aquele frisson nacional, e o filme representou o Brasil no Oscar. O filme virou a realização do ego brasileiro, prova de que essa ligação com a vida nacional é fundamental, faz parte da relação do cineasta com seu público.


R.N.A: Você quer dizer que isso não foi considerado na década de 90?

J.B.A: Não. E isso é um elemento importante, que não foi considerado nessa fase intermediária, dos anos 90, enquanto que o cinema argentino, ao contrário, preservou isso, buscou sua cinematografia lá na sua própria história. Resultado: eles passaram na frente, ganharam força.


R.N.A: Num recente Festival de Cinema de Havana, levantou-se a questão sobre os roteiros na América Latina. Falou-se, por exemplo, que os documentaristas tinham melhores roteiristas do que os cineastas. Queria sua opinião sobre o assunto, já que se trata de uma questão polêmica.

J.B.A: Essa questão de roteiro é, de fato, sempre muito polêmica; eu sou um pouco rebelde no que se refere a roteiro, já que roteiro para mim é um guia. Quando você filma no estúdio, o roteiro tem que ser preciso. E por que tem de ser preciso? No estúdio você constrói um cenário e precisa saber como é que vai filmar, exatamente o quê, e com antecedência, uma vez que vai montar um cenário, trabalho que às vezes consome um mês, dois meses; por isso, antes de se ter o elenco é preciso estar com o roteiro amarrado. Agora, quando se filma fora do estúdio, não, o roteiro, no meu entendimento, funciona como uma espécie de guia da produção. É ilusão achar que você faz um bom filme se tem um bom roteiro.


R.N.A: Isso que dizer que você é um rebelde em relação ao roteiro, tão defendido por Gabriel Garcia Marques e seguido na Escola de Cinema de Santo Antonio de los Baños, de Cuba, onde ele ensinava roteiro?

J.B.A: Eu sou rebelde, sim, acho que às vezes quando o diretor é bom, e o roteiro nem tanto, pode-se fazer um bom filme. E, em outras, o roteiro é bom, mas o diretor não é, e o filme sai ruim. Um ótimo roteiro não garante nada. Há outro aspecto: o bom roteirista pode até mesmo aprisionar o filme. No caso de cinema autoral, que a gente faz desde os anos 60, o diretor não aceita o roteiro porque tolhe parte do trabalho dele, o desafio de estar ali trabalhando com os atores; envolvido no ambiente, no relacionamento com a equipe. Todo diretor tem necessidade de criar em cima daquela indicação do roteiro, então, é uma questão bastante polêmica.


R.N.A: Então se é comum o diretor não cumprir o roteiro, como isso influi no resultado do filme?

J.B.A.: No mundo todo, principalmente onde há concursos, o cineasta faz o projeto, escreve o roteiro, e vai concorrer ao financiamento. Quando ganha, qual a primeira coisa que ele faz? Mexe no roteiro. Todos fazem isso. Eu acho, contudo, que tem a ver com as épocas e as propostas, quer dizer, o roteiro está muito ligado também à proposta de cinema que você quer fazer. Se o cineasta quer ser inventivo e está numa fase pouco inventiva, o roteiro vai ser um problema.


R.N.A: Afinal, qual a importância, então do roteiro?

J.B.A:. O importante é o que está por trás dele. Os elementos que estão no roteiro têm de ser bons, é uma discussão que eu tenho há muito tempo com os roteiristas, e que na verdade eles nunca me convencem, já que a tendência dos roteiristas, no Brasil, é achar que o filme para ser bom precisa deles.


R.N.A: Mas isso é verdadeiro ou não?

J.B.A: Isso nunca foi verdade em lugar nenhum. O que vale é a criatividade, o momento cultural, não propriamente o roteiro, com esse aprisionamento. Eu prefiro fazer uma avaliação crítica, sob o ponto de vista da imaginação, quer dizer, o processo de criação, o processo cultural pelo qual passam as pessoas, os cineastas, e a capacidade de extrair histórias da sociedade, de enfrentar fatos, de criar, esse é que é o problema maior.


R.N.A: No caso de uma adaptação de um livro, o roteiro também não é fundamental?

J.B.A : Pois é, nem no caso de livros o roteiro é fundamental. O Grande Sertão Veredas já teve uma adaptação horrorosa, feita lá em Minas. Adianta você adaptar um grande romance como o Grande Sertão dessa forma? Pode-se dizer que o roteiro é excelente, as pessoas que o fizeram são nomes consagrados do cinema, devem ter feito um bom trabalho, só que o filme não corresponde. Volto a dizer, sou um pouco rebelde, acho que quando você detecta que as histórias não estão agradando, que há uma dispersão, o problema, na minha opinião, está além do roteiro.


R.N.A: Como além do roteiro? Com quem está o problema?

J.B.A: Está no roteirista, no cineasta, na sociedade, na criatividade, no meio, na liberdade de expressão, está em algum ponto do processo, em algum lugar há algo errado, e não é muito fácil corrigir. Não dá para aprisionar a criação cultural com modelos de roteiro. Sou radicalmente contra, acho que o problema é outro, a questão é avançar mais, sociedade e artistas têm de estar mais instigados, ter mais coragem. A própria sociedade tem que também ser capaz de gerar. Aliás, o Hegel não falava que para se ter herói, tem que ter um povo heróico? Eu concordo. De certa forma, ele tinha razão. Em cada momento, o que importa é a sua capacidade artística de revelar a sociedade, criar coisas que tenham força e vida dentro da sociedade, e aí eu acho que há uma conjugação da qual participam o roteirista, o diretor de fotografia, o montador, o diretor de cinema.


R.N.A: Normalmente, o criador, seja ele escritor, cineasta, dramaturgo, sempre tem um antípoda em algum lugar, alguém que começou a observar logo no início de carreira, ou até mesmo no meio do percurso. Quem é o seu par?

J.B.A: Um deles se chama Nagisa Oshima. Tenho outras influências, mas ele me toca por completo. Eu vi no começo de minha carreira, início dos anos 60, o filme O Túmulo do Sol, que eu assisti na França, um filme absolutamente novo, feito com a câmara na mão, tudo como eu pensava fazer, primeiríssimos planos, aquele sol estourando atrás, vermelho, vermelho, os jovens desesperados para sair daquela situação, aquela crise toda, é um filme impressionante. Depois fui para Itália, vi uma mostra de filmes dele, e vi um outro também, que é anterior ao que mencionei, chamado Noite e Névoa Sobre o Japão, sobre universitários. Na história o partido resolveu acabar com esses grupos militantes , que eram profundamente stalinistas, e esses jovens entram em desespero. É um cinema muito corajoso, por isso também me influenciou demais. Mas, principalmente O Túmulo do Sol, que não foi uma influência importante só para mim, é para todo mundo. Eu sou um filhote do neo-realismo, gosto sem paixão da Nouvelle Vague, gosto dos filmes, mas não é meu cinema, dessa época prefiro Nagisa Oshima a Godard, que eu acho curioso, defendo, acho bom, mas não me envolve.


R.N.A: Você é cinéfilo?

J.B.A: Gosto de cinema, mas não sou cinéfilo. Não consigo pensar no cinema desligado da minha relação com a sociedade, com a vida, com a realidade, com a história. Por isso gostava Naguisa Oshima, carregado de conflitos, isso me toma. Ele é muito bom, basta ver que quando havia aquela onda de pornografia no mundo, ele deve ter pensado: ah, é para fazer pornografia, então vamos fazer um filme pornográfico. E fez Império dos Sentidos que está para a pornografia assim como 2001Uma Odisséia no Espaço está para a ficção. São os autores que têm essa função dentro da indústria. Todo mundo está tentando fazer cinema cheio de mecanicismo, com muita tecnologia, até que chega um autor, e usa o caminho oposto. Faz um filme, detona, e a própria indústria passa a se alimentar disso como o cinema americano se alimentou de 2001 uma Odisséia no Espaço e como a pornografia se alimentou de Nagisa Oshima que é pura sensualidade.

R.N.A: Você está lançando um filme?

J.B.A: Sim, chama-se Vlado Trinta Anos Depois, lançado dia 30 de setembro em várias capitais do Brasil, simultaneamente. É um documentário de longa-metragem, basicamente um filme feito sobre um amigo, assassinadosnuma prisão do regime militar do Brasil, em 1975. As pessoas vão entender o quê era aquela época, e porque o Vlado morreu, porque houve tanta reação. Vai ser importante sob esse ponto de vista, o da compreensão daquele momento histórico, além de todo esse lado pessoal, esse aspecto mais emocional. Além disso, estou finalizando um longa de ficção, Veias e Vinhos, para lançar em setembro de 2006.

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