conversa com Maureen Bisilliat
Federico Mengozzi
fotos: arquivo pessoal de Maureen Bisilliat
Apesar do nome, a inglesa Sheila Maureen Bisilliat esbanja brasilidade. Não só porque vive no país desde os anos 50, mas porque viajou pelo Brasil profundo e lançou livros de fotografia inspirados em clássicos de Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa. Sim, Maureen Bisilliat é um dos grandes nomes da fotografia brasileira, embora se recuse a ficar fechada na denominação “fotógrafa”. Ela começou em artes plásticas – com estudos em Paris e Nova York -, passou pela fotografia – integrou a equipe da revista Realidade, momento único da imprensa nacional -, dedicou-se à cultura popular – foi uma das proprietárias da galeria O Bode e uma das organizadoras do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, que dirige - e chegou ao vídeo – entre seus projetos atuais, a criação de um espaço para preservar a memória do Carandiru, em São Paulo. Para Maureen, as etapas não são rupturas, mas partes de um conjunto. “Eu nunca rompo com nada. Tudo se liga. É uma linha que segue.”
Você é mais brasileira do que muitos brasileiros. O que significa o Brasil para você?
Maureen Bisilliat - Não poderia ser diferente. Cheguei pela primeira vez ao Brasil em 1952, há mais de meio século, que é mais do que a vida que muitos brasileiros já viveram. O Brasil foi uma procura de raízes, que eu não tive quando criança. Nasci na Inglaterra, sim, mas vivi em muitos lugares. Meu pai era diplomata, o que me obrigou a uma vida meio camaleônica. O destino me amarrou ao Brasil. Foi um ficar querendo.
Mas você poderia permanecer em teu apartamento, e foi atrás do Brasil real.
Maureen - Eu tinha uma alma errante. É uma questão de personalidade. A ligação com Guimarães Rosa foi fundamental para isso. Quando li Grande Sertão: Veredas, entrei nele como um peixe n´água. A questão de compreender envolve outros raciocínios, que não somente os lingüísticos. Depois de ler, me perguntei o quanto era realidade e o quanto era invenção, e como se uniram. Aí fui ver o escritor, que me sugeriu que fosse testemunhar esse mundo – ele me disse que eu entenderia muito bem o sertão, pois eu tinha raízes irlandesas; a Irlanda e o sertão têm populações que se ligam muito ricamente com a palavra. Uma vez que você está na trilha, você está resolvido. Passa a ter uma identidade. A vida é tua e sempre vai ser rica.
Por mais de 20 anos, junto com meu segundo marido, Jacques Bisilliat, e nosso sócio, Antônio Marcos Silva, que conosco montou o Pavilhão da Criatividade do Memorial, trilhamos o caminho dos artistas populares e dos artesãos anônimos do Brasil.
Maureen e Darcy Ribeiro
O que norteou a criação do Pavilhão da Criatividade?
Maureen – Encontram-se boas coleções de arte popular nos países de origem.
Mas o Memorial apresenta a arte de vários países – Brasil, México, Guatemala, Equador, Peru e outros que estão no depósito. Temos enormes lacunas. Por exemplo, apresentamos peças do Equador e do Peru, mas não conseguimos representar devidamente a Bolívia, assim como os países do Cone Sul. Quando podemos, fazemos exposições temporárias. O problema não é montar exposições, mas manter as peças. É uma tarefa inglória, que não se percebe.
A coleção pertence a um momento. As épocas passam, as coisas mudam – e a arte popular é muito sensível. Hoje, a coleção seria outra, pois a cultura popular entrou numa mutação, incorporando novos materiais, sintéticos, e registrando novas influências, como a da televisão.
E a fotógrafa Maureen Bisilliat?
Maureen - Hoje não gosto de estar atrás da lente de uma máquina fotográfica.
Faço vídeo, não mais fotos – há já uns 15 anos. Ficou repetitivo. Cansei.
Gosto de ligar a imagem ao texto – o vídeo favorece isso. Faço muito vídeo, inclusive videofotografia, que é tirar instantes do vídeo e reproduzir em fotos. Há uns quatro anos me dedico a um trabalho de resgate de memória do Carandiru. É um projeto que faço com minha filha, que iniciou um trabalho no presídio nos anos 80. Fizemos um livro e agora queremos ter um espaço de memória num dos pavilhões. Acho que a memória é muito importante. Não preservá-la de maneira morta, mas tê-la para apreciação. São fotos, vídeos, testemunhos, entrevistas. É como se eu fotografasse, de fato, porque estou sempre lidando com a imagem.
O que significa ter integrado a equipe de Realidade?
Maureen – Um enorme privilégio. Enquanto o fotógrafo da Manchete levava um rolo de filme e tinha de fazer duas reportagens, nós recebíamos os filmes e tínhamos todo o tempo que precisávamos. Nem antes, nem depois, houve isso na imprensa brasileira. A revista procurava adequar as pautas a cada profissional – eu sempre ia para o interior. Conheci o Brasil assim. Se tenho de lembrar algo dessa época, cito a viagem que fiz com o jornalista Audálio Dantas, na Paraíba, para ir atrás das pessoas que caçavam caranguejos. Estava passeando pela lama do rio, escutei as mulheres e fui atrás. Era lama movediça, perigosa. Fotografei. A reportagem sobre as mulheres caranguejeiras é um de meus trabalhos mais conhecidos.
O trabalho em vídeo tem a mesma receptividade que teve o trabalho em
fotografia?
Maureen - Certamente é menos visível. Mas é o que me interessa. Assim como a edição de texto e imagem. De qualquer maneira, ainda estou envolvida com a fotografia. Por exemplo, estou iniciando a catalogação de meu acervo fotográfico para o Instituto Moreira Salles – que me propôs adquiri-lo.
Fazendo isso, não só preservo, como organizo, como sou hoje, aquilo que fui ontem. É muito interessante. Não é fácil, porque você entra num acúmulo de imagens e de repente quer jogar tudo no rio. O hoje é o Memorial, manter o que temos e caminhar; montar o Memorial Carandiru – não com esse nome - e organizar o acervo fotográfico para o Instituto.
E as artes plásticas?
Maureen - Comecei em artes plásticas aos 20 anos e produzi até os 30. Dos 30 aos 50 anos, foi fotografia. Dos 50 até agora, 73 anos de idade, vídeo e edição. Mas sinto que hoje não é o momento das artes plásticas, como tradicionalmente as conhecíamos. Elas enveredaram por outros caminhos. Acho que podem estar hibernando nos grandes centros – fui recentemente a Nova York e senti um certo cansaço -, desenvolvendo novas energias. Mas há uma energia espantosa nos países africanos, que não perderam suas lendas, assim como em países como a Turquia e a China – a pop art chinesa é uma loucura.
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Federico Mengozzi é jornalista da área cultural.
Federico Mengozzi
fotos: arquivo pessoal de Maureen Bisilliat
Apesar do nome, a inglesa Sheila Maureen Bisilliat esbanja brasilidade. Não só porque vive no país desde os anos 50, mas porque viajou pelo Brasil profundo e lançou livros de fotografia inspirados em clássicos de Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa. Sim, Maureen Bisilliat é um dos grandes nomes da fotografia brasileira, embora se recuse a ficar fechada na denominação “fotógrafa”. Ela começou em artes plásticas – com estudos em Paris e Nova York -, passou pela fotografia – integrou a equipe da revista Realidade, momento único da imprensa nacional -, dedicou-se à cultura popular – foi uma das proprietárias da galeria O Bode e uma das organizadoras do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, que dirige - e chegou ao vídeo – entre seus projetos atuais, a criação de um espaço para preservar a memória do Carandiru, em São Paulo. Para Maureen, as etapas não são rupturas, mas partes de um conjunto. “Eu nunca rompo com nada. Tudo se liga. É uma linha que segue.”
Você é mais brasileira do que muitos brasileiros. O que significa o Brasil para você?
Maureen Bisilliat - Não poderia ser diferente. Cheguei pela primeira vez ao Brasil em 1952, há mais de meio século, que é mais do que a vida que muitos brasileiros já viveram. O Brasil foi uma procura de raízes, que eu não tive quando criança. Nasci na Inglaterra, sim, mas vivi em muitos lugares. Meu pai era diplomata, o que me obrigou a uma vida meio camaleônica. O destino me amarrou ao Brasil. Foi um ficar querendo.
Mas você poderia permanecer em teu apartamento, e foi atrás do Brasil real.
Maureen - Eu tinha uma alma errante. É uma questão de personalidade. A ligação com Guimarães Rosa foi fundamental para isso. Quando li Grande Sertão: Veredas, entrei nele como um peixe n´água. A questão de compreender envolve outros raciocínios, que não somente os lingüísticos. Depois de ler, me perguntei o quanto era realidade e o quanto era invenção, e como se uniram. Aí fui ver o escritor, que me sugeriu que fosse testemunhar esse mundo – ele me disse que eu entenderia muito bem o sertão, pois eu tinha raízes irlandesas; a Irlanda e o sertão têm populações que se ligam muito ricamente com a palavra. Uma vez que você está na trilha, você está resolvido. Passa a ter uma identidade. A vida é tua e sempre vai ser rica.
Por mais de 20 anos, junto com meu segundo marido, Jacques Bisilliat, e nosso sócio, Antônio Marcos Silva, que conosco montou o Pavilhão da Criatividade do Memorial, trilhamos o caminho dos artistas populares e dos artesãos anônimos do Brasil.
Maureen e Darcy Ribeiro
O que norteou a criação do Pavilhão da Criatividade?
Maureen – Encontram-se boas coleções de arte popular nos países de origem.
Mas o Memorial apresenta a arte de vários países – Brasil, México, Guatemala, Equador, Peru e outros que estão no depósito. Temos enormes lacunas. Por exemplo, apresentamos peças do Equador e do Peru, mas não conseguimos representar devidamente a Bolívia, assim como os países do Cone Sul. Quando podemos, fazemos exposições temporárias. O problema não é montar exposições, mas manter as peças. É uma tarefa inglória, que não se percebe.
A coleção pertence a um momento. As épocas passam, as coisas mudam – e a arte popular é muito sensível. Hoje, a coleção seria outra, pois a cultura popular entrou numa mutação, incorporando novos materiais, sintéticos, e registrando novas influências, como a da televisão.
E a fotógrafa Maureen Bisilliat?
Maureen - Hoje não gosto de estar atrás da lente de uma máquina fotográfica.
Faço vídeo, não mais fotos – há já uns 15 anos. Ficou repetitivo. Cansei.
Gosto de ligar a imagem ao texto – o vídeo favorece isso. Faço muito vídeo, inclusive videofotografia, que é tirar instantes do vídeo e reproduzir em fotos. Há uns quatro anos me dedico a um trabalho de resgate de memória do Carandiru. É um projeto que faço com minha filha, que iniciou um trabalho no presídio nos anos 80. Fizemos um livro e agora queremos ter um espaço de memória num dos pavilhões. Acho que a memória é muito importante. Não preservá-la de maneira morta, mas tê-la para apreciação. São fotos, vídeos, testemunhos, entrevistas. É como se eu fotografasse, de fato, porque estou sempre lidando com a imagem.
O que significa ter integrado a equipe de Realidade?
Maureen – Um enorme privilégio. Enquanto o fotógrafo da Manchete levava um rolo de filme e tinha de fazer duas reportagens, nós recebíamos os filmes e tínhamos todo o tempo que precisávamos. Nem antes, nem depois, houve isso na imprensa brasileira. A revista procurava adequar as pautas a cada profissional – eu sempre ia para o interior. Conheci o Brasil assim. Se tenho de lembrar algo dessa época, cito a viagem que fiz com o jornalista Audálio Dantas, na Paraíba, para ir atrás das pessoas que caçavam caranguejos. Estava passeando pela lama do rio, escutei as mulheres e fui atrás. Era lama movediça, perigosa. Fotografei. A reportagem sobre as mulheres caranguejeiras é um de meus trabalhos mais conhecidos.
O trabalho em vídeo tem a mesma receptividade que teve o trabalho em
fotografia?
Maureen - Certamente é menos visível. Mas é o que me interessa. Assim como a edição de texto e imagem. De qualquer maneira, ainda estou envolvida com a fotografia. Por exemplo, estou iniciando a catalogação de meu acervo fotográfico para o Instituto Moreira Salles – que me propôs adquiri-lo.
Fazendo isso, não só preservo, como organizo, como sou hoje, aquilo que fui ontem. É muito interessante. Não é fácil, porque você entra num acúmulo de imagens e de repente quer jogar tudo no rio. O hoje é o Memorial, manter o que temos e caminhar; montar o Memorial Carandiru – não com esse nome - e organizar o acervo fotográfico para o Instituto.
E as artes plásticas?
Maureen - Comecei em artes plásticas aos 20 anos e produzi até os 30. Dos 30 aos 50 anos, foi fotografia. Dos 50 até agora, 73 anos de idade, vídeo e edição. Mas sinto que hoje não é o momento das artes plásticas, como tradicionalmente as conhecíamos. Elas enveredaram por outros caminhos. Acho que podem estar hibernando nos grandes centros – fui recentemente a Nova York e senti um certo cansaço -, desenvolvendo novas energias. Mas há uma energia espantosa nos países africanos, que não perderam suas lendas, assim como em países como a Turquia e a China – a pop art chinesa é uma loucura.
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Federico Mengozzi é jornalista da área cultural.
Revista Nossa América - 2004
Um comentário:
QUE MULHER INCRÍVEL E ADMIRÁVEL!
(Mas eu também já ganhei beijinho e abraço do Darcy Ribeiro - o melhor brasileiro de todos os tempos).
Voltando a ela, o sentimento dela em relação às coisas do Brasil é de pôr muita gente poderosa = a avestruz.
Enterrem-se na areia.
E de preferência não saiam.
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